Uma cáfila se forma. São vários, uns com duas ou três ou quatro corcovas, alguns calombos, calos, indefinidos; restam em alguns, ainda, apenas uma corcova, confundidos, por vezes, a dromedários – falta-lhes identidade – tamanho peso preso às costas. E sempre o mesmo comportamento, sempre em fila, sempre ruminante de tanto ingerir, tranqüilos, quase tudo.
Mas rugidos também são ouvidos, fortes, agudos, agudíssimos – talvez de uma leoa acuada, sem filhotes ou quem sabe, na flor da idade, em tempo de acasalamento precoce. Aos saltos, vão surgindo entre a linha reta dos camelos, alguns leões, ainda sem juba formada, mas com ferocidade comprovada e tentativas, ineficazes, de domesticação.
E entre tamanha bicharada, surge também, saltitante, às vezes em linha reta, às vezes fazendo giros, cantarolando ou totalmente mudas, mas surpreendendo sempre, umas poucas crianças. Não é possível classificar seu comportamento, nem tão pouco limitar sua ação, ela é capaz de tudo, e, sobretudo, realizar o novo, sem muito, de novo, e de novo, e de novo. Mas mesmo assim, ninguém a compreende. Ou por isso, poucos compreendem. Tolos adultos.
Você pode estar pensando que se trata de um safári, ou quem sabe de um passeio ao zoológico – mesmo porque camelos e leões vivem em habitat diferentes. Mas não. Estou dizendo da escola. Desse lugar que deveria ser o lugar do devir-criança potencial, mas está mais para um espetáculo de circo no qual o horror seria o grande número do dia.
Ao entrar nas escolas, vemos disseminada uma postura educadora em busca de camelos-crianças, prontas para receberem todo o peso do conhecimento, dos dogmas pedagógicos, dos conteúdos especializados, da razão organizadora – única maneira de compreender e viver no mundo.
Há também os leões-crianças. Estes entendem as regras. Repetem, como os camelos-crianças todas as frases de ordem, decoraram – porque ainda não conseguem ler – muito bem as regras afixadas nas paredes que dizem: respeitem os professores, não grite, não brigue, não saia do seu lugar, não suba na cadeira. E na primeira oportunidade, já estão rugindo, burlando qualquer tipo de lei imposta, mas não compreendida por eles. Os professores – que pouco conversam com seus leões, por julgá-los selvagens e destituídos de qualquer tipo de linguagem cognoscível – assumem então, suas posturas domadoras, e aos berros enfurecidos – já se foi aí qualquer tipo de lei, bom senso ou combinado – tentam dominar os leões-crianças, que após tanta correria, cansam-se e esperam pelo outro dia, já descansados, para por em prática todo sua capacidade, potencializada por este evento, de contestação pueril.
No entanto, restam ainda as crianças-crianças. A forma potente para criar, um novo. Estas, frente a leões e camelos, se esquivam, deslizam, seguem as regras, mas questionam o porquê, criam novas. Mas sem rugir, nem tampouco carregar um fardo tão grande, tão pesado para ombros ainda em formação. Espertas, às vezes acrescentam mais peso às crianças-camelo, contudo, dividem o fardo em momentos oportunos; em outros, rugem junto aos leões, menos para burlar as regras, mais para testar sua capacidade vocal. Querem talvez, mostrar que toda criança tem algo de selvagem, algo de resignado, algo de novo, como todo humano. Mas a condição selvagem, nem tampouco, a condição camelo podem roubar delas a sua condição primeira, criança.
Não pode ser a toa que Nietzsche, ao descrever sua metáfora para as três metamorfoses do espírito tenha escolhido a forma criança. Ou pode. Apesar de não ser uma fábula específica, como toda obra deste pensador não o é, limitada a respeito da condição aqui da criança empírica – um ser humano no início de seu desenvolvimento[1] – a narrativa pode servir para problematizar o modo como as crianças e jovens são tratados em algumas instituições escolares.
Como garantir que as crianças impíricas, transmutadas, condicionadas como camelos e leões, possam de fato, assumir sua condição plena, metamorfoseada em criança-criança? Simplismente crianças – “Ser simples requer muito esforço.” Clarice Lispector. Eis o fardo para o camelo-professor que, contra o sistema, tornar-se-á o leão-professor, para então, metamorfosear-se em criança-professor. E teremos crianças, muitas crianças, e potentemente o novo. Ou tudo isso não faz sentido nenhum, e releio novamente o texto de Nietzsche.
Texto produzido a partir das provocações da leitura “Das três metamorfoses do espírito”, do livro Assim Falava Zaratustra, de Frederich Nietzsche, nos encontros da disciplina Educação e Filosofias da Diferença, PPGE - Faculdade de Educação – UFJF. Jun-2011.
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