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“Educai as crianças,
para que não seja necessário punir os adultos”. Uma frase corriqueira a habitar
territórios conhecidíssimos dos escolares: palestras, salas de aula, diretoria,
secretaria, manuais pedagógicos... Agora, estampa a entrada de uma escola da
cidade. De tão costumeira, ela soa como verdade absoluta e pior, absolutizável.
Mas nela se esconde o que há de mais tenebroso nos sistemas de controle dos
cidadãos: os pressupostos universais de normalidade.
Faz parte do senso
comum reproduzir um discurso alucinado de que vale tudo para uma boa educação.
Essa frase me perturbou durante um tempo, mas só agora consigo
pensar violentado para tornar um pouco mais inteligível minhas inquietações. Esta
afirmação está fundamentada em certo senso que limita outros tantos
possíveis, seguem alguns, mas podem ainda haver outros tantos: que há um modelo
eficaz de educação, que crianças são ingênuas e que não merecem ser punidas,
adultos são casos perdidos e imutáveis, que toda educação não tem a ver com
punição, que todo adulto que merece punição teve uma péssima educação, que toda
criança que tiver uma boa educação será, com certeza, um adulto não infrator e
por aí vai...
Pensando outras
relações menos explícitas pelo senso comum, criadas na realidade produzida pela
e na escola, esta frase pode perder seu caráter um tanto positivo e tomar ares
fascistas. Pasmem, mas nenhuma teoria pedagógica é capaz de certificar que uma
criança tendo acesso a certos tipos de informação, vá usá-los para o que todo
mundo acha que é correto e bom. Cada sociedade, grupo social, indivíduo cria
seus próprios valores em relação ao seu contexto. Nenhuma escola é igual a
outra, mesmo sendo regida pelas mesmas leis. Mesmos as experiências
educacionais mais bem sucedidas no Brasil ou no exterior não são totalizantes.
Partem de realidades muito singulares e específicas. Não é lendo ou gostando de Paulo Freire que
serei capaz de fazer como ele. Esse talvez seja, ao contrário, o erro. Fazer
como Freire fez é um erro, achar que serei capaz de pôr em prática assim como
ele fez é algo de uma transcendência ingênua. Achar que é um método eficaz para
formar cidadãos só tem criado isso que se vê: um monte de gente que lê Freire e
o nega com mesma força de fascinação, como se, o que ele tivesse feito, fosse
algo totalmente descolado da realidade da educação. Outro erro. Freire pensou o
que penso intimamente implicado com os encontros na educação. No entanto, seu
trabalho não pode ser lido como uma teoria construída, com eficácia garantida.
É um recorte do caos, a melhor forma com que ele, juntos de outros, pode lidar
com a realidade produzida por todos à sua volta, inclusive por ele mesmo. Mas
saber que ele inventou muito serve para pôr pra pensar que é possível fazer de
um modo diferente, sobretudo, diferente do modo de Paulo Freire, que é só de
Paulo Freire.
Confunde-se ainda muito
na escola a educação com punição, talvez por mais ingenuidade. Puni-se a criança
para que o adulto não seja punido. Num amontoado de causa-efeito sem sentido
algum. É de praxe alunos sem recreio, distribuição de pontos e mais pontos
para participação em atividades, cópias e mais cópias. Talvez não seja
ingenuidade como poderia apontar uma relação entre os estudos de Foucault (1987)
e docilização dos corpos pelas instituições. Talvez não seja por acaso que a
escola esteja repleta de um vocabulário que mais lembra prisões que a tal
idealizada liberdade de aprendizagem: disciplina, uniforme, delegacia de
ensino, controle rigoroso de horários, grades e mais grades que impedem de sair
ou de entrar, pouco tempo para atividades livres e banhos de sol...
Educar crianças para
não punir os adultos, ainda aposta numa impossibilidade de mudança perigosa.
Quer dizer que um adulto infrator não pode mudar de conduta? Então, de fato, os
sistemas de recuperação não estão falidos por acaso, é que os mesmos que querem
educar, ou melhor, disciplinar e docilizar corpos infantis, são os mesmos que
não acreditam e impõem situações degradantes aos encarcerados.
Mas o que estamos
vivendo é que nem o sistema docilizador das escolas, nem o sistema
judiciário-penitenciário tem dado conta de corpos infantis ou adultos. Na
dúvida, tem-se punido crianças, adultos e com-fundido educação com punição.
Não acredito que existe
ideal a ser atingido ou método educacional eficaz que impeça qualquer tipo de
punição. Nem Paulo Freire, nem método chinês de aceleração do rendimento, nem
educação estadunidense de crianças armadas para morrer... Educação talvez seja
espaço para discutir outros modos de vida, inclusive, território no qual a
punição deve ser sempre discutida, e educação também. Talvez quando atentarmos
para que a educação pode muito mais que métodos eficazes de controle, possamos
criar uma outra educação capaz de se perguntar sempre o que é punição e o que é
educação: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos. Mais que acreditar numa educação que tem resposta pra tudo, talvez seja mais interessante investir numa educação que questiona certos pressupostos e senso comum, que paralisam e impedem novas criações.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
Para pôr pra pensar mais:
FOUCAULT, Michel. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos e escritos; V).
e
O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? Por Luiz B. L. Orlandi
Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/orlandi/que_estamos_ajudando.pdf
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