sábado, 17 de janeiro de 2015

Muito mais que sete minutos: teatro e mercado

Não é raro ver em muitas conversas ou discussões a respeito da realidade da produção teatral brasileira sensos do tipo ‘fazer teatro no Brasil é muito difícil porque é caro’, ‘brasileiro não vai ao teatro’, ‘o público não sabe se comportar dentro do teatro’. Eu desconfio.

A despretensiosa audiência à competente montagem “Sete minutos”, texto de Antônio Fagundes, da Cia. Teatral Fazendo Arte, neste verão escaldante, na 13ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Juiz de Fora, ajudou a fritar ainda mais o pensamento.

Chamou-me atenção o texto que conta a história de um grande ator que interrompe a interpretação clássica peça Macbeth, de Shakespeare, no meio, irritado com atitudes de seu público, que segundo ele, não seriam adequadas ao teatro: atender telefone, comer pipocas e batatas fritas, tosses. Ações que mostrariam desrespeito à representação sagrada do palco. Tudo muito focado na relação do artista com sua plateia. À medida que se passa, o ator vai descobrindo que algumas atitudes do público e que ele julgava inapropriadas poderiam ter outra explicação e até fazerem um sentido aceitável, como o homem que retira os sapatos e põe os pés sobre o palco porque tinha caminhado uma longa distância, a pé, para prestigiar, pela primeira vez, com muita emoção, o que ele chamou de “show de teatro”.

O texto seria uma ótima crítica aos prejuízos e influências maléficas que o teatro teria sofrido das telenovelas e filmes hollywoodianos. Entendemos porque o nome da peça é “Sete minutos”, tempo reservado aos programas de TV entre um intervalo e outro, período máximo que o público ficaria atento a uma ação. No entanto, o texto é frágil e afunda numa ralação dualista entre público e ator, esquecendo o emaranhado que uma submissão ao mercado de arte produz. Pôs a pensar outras relações.

Aqui, não se trata de uma critica ao texto, mas, sobretudo, uma crítica às relações as quais o texto quer manter e algumas que ele deixa difícil enxergar.
O texto defende que algumas atitudes indesejadas do público teria a ver com uma formação cultural que não privilegiaria a leitura de bons livros, acentuada pelas mazelas sociais e insinua que resolvê-las não seria uma questão para o teatro. Talvez não para o seu teatro, mas para outros modos de teatro, as mazelas ou relações sociais de opressão seriam o tema fundamental da arte da encenação.

Afinal, que teatro?

A tradição teatral a qual o texto faz referência é um teatro burguês (termo um tanto banalizado, mas que aqui faz sentido) que ainda convivia com um rei e que produzia três sinais na chegada do monarca para então permitir que peça começasse. Um tempo em que as pessoas iam para serem vistas, inclusive com arquitetura projetada para tal, como a Casa da Ópera, em Ouro Preto. Os espectadores também aproveitavam para desfilar seus modelitos, suas melhores roupas, cartolas e leques.

Casa da Ópera- Ouro Preto. fonte: Ronald Peret
No Brasil Império, período da construção dos primeiros teatros brasileiros, os temas levados ao palco, em sua maioria, eram clássicos europeus, com produções locais muito tímidas. A maioria dos artistas vinha de fora do país. A vinda da Família Real impulsionou a produção e surgiram então as companhias de grandes atores como João Caetano (1808-1863) e Martins Penna (1815-1848). Época que consagrou companhias encabeçadas por um ator famoso que se beneficiava de sua fama ou temia perdê-la.

No século XIX, na capital do Brasil, tínhamos o chamado Teatro de Revista que tratava de temas cotidianos da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil, com certo teor de crítica social, sensualidade e humor que posteriormente se desdobraria no século XX no show de vedetes. É descrito por seus pesquisadores como muito popular num período em que não havia televisão. Muitos iam ao teatro por causa dos grandes atores como Procópio Ferreira, Odilon Azevedo, Dulcina de Moraes entre outros. O maior apelo popular ou propaganda que se tinha nesta época era o nome do artista.

O que não quer dizer que não existia outros tipo de teatro, como companhia de atores negros nigerianos libertos que criaram a primeira companhia dramática brasileira, em 1880, Brazilian Dramatic Company. Mas não é a esta tradição a qual o texto de Fagundes faz referência. Mas sim a um teatro burguês, com temas burgueses para um público burguês.

Isso porque outros criadores produziram outros tipos de teatro que desafiaram a tradição mercadológica ou burguesa: Augusto Boal e Antonin Artaud, um brasileiro e outro francês, para citar apenas dois. Um teatro totalmente implicado, implicante e ocupado em modificar a realidade social na qual se está inserido. Boal dizia que “somos todos atores”, atuamos o tempo todo e que o palco serviria para desnudar as relações opressoras e para isso, todos eram convidados a participar da ação teatral, desinstituindo a diferença entre ator e público na busca de soluções para a vida. Artaud, enfadado com a opressão da linguagem lógica, textual e clássica que dominava o teatro europeu de seu tempo propõe o Teatro da Crueldade que busca influências em rituais de povos nativos da Ilha de Bali com proposta de temas como a colonização da Américas.

Se o texto de Fagundes faz menção a um sagrado perdido pelo público, o teatro de Boal e Artaud afirma que sagrada é a vida toda, a vida lá fora, antes e depois do espetáculo. A produção de Fagundes ou outros “globais” que vez e outra fazem declarações polêmicas a respeito do mercado de arte do Brasil – o ator Caio Blat aocriticar o monopólio da produção de filmes exercida pela Globo Filmes ou a má vontade da atriz Leandra Leal com a produção de novelas e que agora figuram na telinha da novela das nove – são quase inócuas ou só ajudam a movimentar um mercado de especulação ressentido e estéreo que privilegia muito poucos.

O texto reserva um lugar muito especial para aquele que está no palco à medida que a longa e difícil dedicação anterior a peça é louvada. O público então deveria estar ciente de que se ensaiou muito para que se fizesse aquilo, era necessário silêncio e atenção para que o ator mostre o que sabe fazer. Já Boal e Artaud atentam que o teatro deve ser ensaiado pelo ator para fazer junto com público e fazer junto não quer dizer necessariamente atuar junto no palco, mas estar atento ao que acontece, ao encontro e fazer sempre diferente.

Algumas pessoas do teatro se entregam facilmente a este discurso ressentindo da falta de mercado teatral no Brasil, o que é muito perigoso. No teatro e por isso na vida, é preciso estar atento ao personagem que fala. Uma fala dita por um ou outro personagem muda completamente as relações. Um discurso dito por Antônio Fagundes ou por um grupo pouco conhecido, do interior do Brasil, muda completamente as relações. Pois existe sim uma cultura teatral no Brasil que é alavancada por um mercado muito promissor e impulsionada por figuras midiáticas e que o discurso da “falta de cultura” quer comprar.

Há outras relações que aqueles que reclamam que o público brasileiro não vai ou não sabe se comportar no teatro querem ou tentam ignorar. Que produção está a serviço do mercado? Que mercado?

Não se trata de assistir a peça teatral como se assiste a uma novela ou filme, mas também a posição que uma peça teatral assume em alternativa a outra coisa. Não se trata apenas de ocupar o fim de semana, o fim de um dia cheio, as férias ao invés do futebol de domingo. Mero entretenimento. Consumo. Não por acaso que as produções que mais vêm dominando o mercado teatral brasileiro são os musicais made in Broadway, mesmo aqueles com temas tupiniquins. Grandes produções com grande apelo popular, muito dinheiro investido e muito dinheiro arrecadado. Ou comédias stand up que lotam sessões impulsionadas por canais da internet, TV a cabo ou TV aberta. Produções estas, como lembra Boal, no qual “o mundo é dado como conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores”.

O que desagrada a Fagundes não é a falta de público, mas a educação do público que não está acostumado a ir ao teatro. Talvez ele, depois de muito sucesso, não tenha se dado conta de que é isso mesmo: realmente o público que passou a assisti-lo no teatro é o mesmo que o assiste de casa, entre pouco menos de 7 minutos, o seu Rei do Gado e que, dificilmente, iria a uma peça de um grupo de atores pouco conhecidos.

O teatro de Fagundes, o teatro midiático, do consumo, não é o mesmo produzido por Boal ou Artaud não só porque é feito para ser visto, mas porque é feito para agradar os reis que se assentam e não querem ser incomodados.

O que não significa que todos que estão em lugares de destaque da mídia tradicional da interpretação são assim. Inclusive penso até que os mais competentes são também os menos ressentidos com seu público. Como Fernanda Montenegro que assisti em “Viver sem tempos mortos”, em Juiz de Fora, numa sessão extra, domingo ao meio dia. Com plateia lotada, com pessoas de diferentes classes sociais e idades, muitos com certeza, estariam lá apenas porque era Fernanda Montenegro, da televisão. No palco apenas ela, um banco e uma luz incidente. Na plateia um silêncio constrangedor. A sensação que, se respirasse, tudo estava perdido, poderia atrapalhar. Sem nenhum “psssiiuuu”, sem nenhuma norma de etiqueta, sem nenhum aviso prévio no bilhete de entrada. Um ato ritualístico o qual todos fazíamos juntos o espetáculo.

Vale lembrar também que existem vários grupos que “vivem apenas de teatro”, como se diz por aí, e não possuem outra projeção midiática a não ser sua própria produção e que questionam o mercado e lutam por mais receita para suas produções, mas que não se entregam a este discurso ressentido de consumo. Caso de grupos como Grupo Galpão e Cia. Luna Lunera de Belo Horizonte, Parlapatões e Os Satyros de São Paulo, Cia dos Atores e Armazém Cia de Teatro do Rio de Janeiro, para ficar com poucos do sudeste do Brasil.

Um teatro feito para agradar, para ser visto, para entreter, para divertir, feito para ser consumido, provavelmente, continuará a disputar público com filmes de Hollywood, com novelas televisivas, com séries de TV, com canais de internet, sem ofender muito os modos e os bons costumes da sociedade. A questão já não é apenas o tempo que as pessoas reservam para as coisas, mas também que coisas as pessoas reservam para seu tempo. Qual diferença entre em ir a um teatro, assistir a um filme, uma peça, um show de música ou tomar uma cerveja na esquina se o desejo é apenas anestesiar os sentidos e não despertar outros tantos sentidos, sobretudo aqueles que menos se quer tocar?
Há ainda um teatro sem modos, sem educação, não consumista que pulsa vida em palcos, livros, ruas, praças, esquinas, escolas, galpões...

Torço para que artistas da cena continuem a ensaiar muito, não para serem vistos, porém para poderem ver o que está além do palco, a cada noite e cada dia. Talvez interromper um clássico, no meio de uma apresentação, seja o ato mais teatral, sincero, ritualístico e sagrado que nós como atores possamos fazer para denunciar aquilo que limita nossas vidas a meras representações sociais. Que teatro suportaria isso?



 “Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a platéia e a platéia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana.”

Trecho da mensagem de Augusto Boal, em 2009, quando então Embaixador Internacional do Teatro da UNESCO, para o dia 27 de março, Dia Mundial do Teatro.




Para mais leituras:
BOAL, Augusto. O teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu Duplo. 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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