Não é raro ver em
muitas conversas ou discussões a respeito da realidade da produção teatral
brasileira sensos do tipo ‘fazer teatro no Brasil é muito difícil porque é caro’,
‘brasileiro não vai ao teatro’, ‘o público não sabe se comportar dentro do
teatro’. Eu desconfio.
A despretensiosa
audiência à competente montagem “Sete minutos”, texto de Antônio Fagundes, da Cia. Teatral
Fazendo Arte, neste verão escaldante, na 13ª Campanha de Popularização do
Teatro e da Dança de Juiz de Fora, ajudou a fritar ainda mais o pensamento.
Chamou-me atenção o texto
que conta a história de um grande ator que interrompe a interpretação clássica
peça Macbeth, de Shakespeare, no meio, irritado com atitudes de seu público, que
segundo ele, não seriam adequadas ao teatro: atender telefone, comer pipocas e batatas
fritas, tosses. Ações que mostrariam desrespeito à representação sagrada do
palco. Tudo muito focado na relação do artista com sua plateia. À medida que se
passa, o ator vai descobrindo que algumas atitudes do público e que ele julgava
inapropriadas poderiam ter outra explicação e até fazerem um sentido aceitável,
como o homem que retira os sapatos e põe os pés sobre o palco porque tinha
caminhado uma longa distância, a pé, para prestigiar, pela primeira vez, com
muita emoção, o que ele chamou de “show de teatro”.
O texto seria uma ótima
crítica aos prejuízos e influências maléficas que o teatro teria sofrido das
telenovelas e filmes hollywoodianos. Entendemos porque o nome da peça é “Sete
minutos”, tempo reservado aos programas de TV entre um intervalo e outro,
período máximo que o público ficaria atento a uma ação. No entanto, o texto é
frágil e afunda numa ralação dualista entre público e ator, esquecendo o
emaranhado que uma submissão ao mercado de arte produz. Pôs a pensar outras
relações.
Aqui, não se trata de
uma critica ao texto, mas, sobretudo, uma crítica às relações as quais o texto
quer manter e algumas que ele deixa difícil enxergar.
O texto defende que algumas
atitudes indesejadas do público teria a ver com uma formação cultural que não
privilegiaria a leitura de bons livros, acentuada pelas mazelas sociais e
insinua que resolvê-las não seria uma questão para o teatro. Talvez não para o
seu teatro, mas para outros modos de teatro, as mazelas ou relações sociais de
opressão seriam o tema fundamental da arte da encenação.
Afinal, que teatro?
A tradição teatral a
qual o texto faz referência é um teatro burguês (termo um tanto banalizado, mas
que aqui faz sentido) que ainda convivia com um rei e que produzia três sinais
na chegada do monarca para então permitir que peça começasse. Um tempo em que
as pessoas iam para serem vistas, inclusive com arquitetura projetada para tal,
como a Casa da Ópera, em Ouro Preto. Os espectadores também aproveitavam para desfilar
seus modelitos, suas melhores roupas, cartolas e leques.
Casa da Ópera- Ouro Preto. fonte: Ronald Peret |
No Brasil Império,
período da construção dos primeiros teatros brasileiros, os temas levados ao
palco, em sua maioria, eram clássicos europeus, com produções locais muito
tímidas. A maioria dos artistas vinha de fora do país. A vinda da Família Real
impulsionou a produção e surgiram então as companhias de grandes atores como
João Caetano (1808-1863) e Martins Penna (1815-1848). Época que consagrou companhias
encabeçadas por um ator famoso que se beneficiava de sua fama ou temia
perdê-la.
No século XIX, na
capital do Brasil, tínhamos o chamado Teatro de Revista que tratava de temas
cotidianos da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil, com certo teor de crítica
social, sensualidade e humor que posteriormente se desdobraria no século XX no show
de vedetes. É descrito por seus pesquisadores como muito popular num período em
que não havia televisão. Muitos iam ao teatro por causa dos grandes atores como
Procópio Ferreira, Odilon Azevedo, Dulcina de Moraes entre outros. O maior apelo
popular ou propaganda que se tinha nesta época era o nome do artista.
O que não quer dizer
que não existia outros tipo de teatro, como companhia de atores negros nigerianos
libertos que criaram a primeira companhia dramática brasileira, em 1880, Brazilian Dramatic Company. Mas não é a esta
tradição a qual o texto de Fagundes faz referência. Mas sim a um teatro
burguês, com temas burgueses para um público burguês.
Isso porque outros
criadores produziram outros tipos de teatro que desafiaram a tradição
mercadológica ou burguesa: Augusto Boal e Antonin Artaud, um brasileiro e outro
francês, para citar apenas dois. Um teatro totalmente implicado, implicante e
ocupado em modificar a realidade social na qual se está inserido. Boal dizia que
“somos todos atores”, atuamos o tempo todo e que o palco serviria para desnudar
as relações opressoras e para isso, todos eram convidados a participar da ação teatral,
desinstituindo a diferença entre ator e público na busca de soluções para a
vida. Artaud, enfadado com a opressão da linguagem lógica, textual e clássica que
dominava o teatro europeu de seu tempo propõe o Teatro da Crueldade que busca
influências em rituais de povos nativos da Ilha de Bali com proposta de temas
como a colonização da Américas.
Se o texto de Fagundes
faz menção a um sagrado perdido pelo público, o teatro de Boal e Artaud afirma
que sagrada é a vida toda, a vida lá fora, antes e depois do espetáculo. A
produção de Fagundes ou outros “globais” que vez e outra fazem declarações
polêmicas a respeito do mercado de arte do Brasil – o ator Caio Blat aocriticar o monopólio da produção de filmes exercida pela Globo Filmes ou a má vontade da atriz Leandra Leal com a produção de novelas e que agora figuram na telinha da novela das nove – são quase
inócuas ou só ajudam a movimentar um mercado de especulação ressentido e
estéreo que privilegia muito poucos.
O texto reserva um
lugar muito especial para aquele que está no palco à medida que a longa e
difícil dedicação anterior a peça é louvada. O público então deveria estar
ciente de que se ensaiou muito para que se fizesse aquilo, era necessário
silêncio e atenção para que o ator mostre o que sabe fazer. Já Boal e Artaud
atentam que o teatro deve ser ensaiado pelo ator para fazer junto com público e
fazer junto não quer dizer necessariamente atuar junto no palco, mas estar
atento ao que acontece, ao encontro e fazer sempre diferente.
Algumas pessoas do teatro
se entregam facilmente a este discurso ressentindo da falta de mercado teatral
no Brasil, o que é muito perigoso. No teatro e por isso na vida, é preciso
estar atento ao personagem que fala. Uma fala dita por um ou outro personagem
muda completamente as relações. Um discurso dito por Antônio Fagundes ou por um
grupo pouco conhecido, do interior do Brasil, muda completamente as relações.
Pois existe sim uma cultura teatral no Brasil que é alavancada por um mercado muito
promissor e impulsionada por figuras midiáticas e que o discurso da “falta de
cultura” quer comprar.
Há outras relações que
aqueles que reclamam que o público brasileiro não vai ou não sabe se comportar
no teatro querem ou tentam ignorar. Que produção está a serviço do mercado? Que
mercado?
Não se trata de
assistir a peça teatral como se assiste a uma novela ou filme, mas também a
posição que uma peça teatral assume em alternativa a outra coisa. Não se trata
apenas de ocupar o fim de semana, o fim de um dia cheio, as férias ao invés do
futebol de domingo. Mero entretenimento. Consumo. Não por acaso que as
produções que mais vêm dominando o mercado teatral brasileiro são os musicais made in Broadway, mesmo aqueles com
temas tupiniquins. Grandes produções com grande apelo popular, muito dinheiro
investido e muito dinheiro arrecadado. Ou comédias stand up que lotam sessões impulsionadas por canais da internet, TV
a cabo ou TV aberta. Produções estas, como lembra Boal, no qual “o mundo é dado
como conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus valores são
impostos aos espectadores”.
O que desagrada a Fagundes não é a falta de público, mas a educação do público que não está
acostumado a ir ao teatro. Talvez ele, depois de muito sucesso, não tenha se dado
conta de que é isso mesmo: realmente o público que passou a assisti-lo no
teatro é o mesmo que o assiste de casa, entre pouco menos de 7 minutos, o seu
Rei do Gado e que, dificilmente, iria a uma peça de um grupo de atores pouco
conhecidos.
O teatro de Fagundes, o
teatro midiático, do consumo, não é o mesmo produzido por Boal ou Artaud não só
porque é feito para ser visto, mas porque é feito para agradar os reis que se
assentam e não querem ser incomodados.
O que não significa que
todos que estão em lugares de destaque da mídia tradicional da interpretação são
assim. Inclusive penso até que os mais competentes são também os menos
ressentidos com seu público. Como Fernanda Montenegro que assisti em “Viver sem
tempos mortos”, em Juiz de Fora, numa sessão extra, domingo ao meio dia. Com
plateia lotada, com pessoas de diferentes classes sociais e idades, muitos com
certeza, estariam lá apenas porque era Fernanda Montenegro, da televisão. No
palco apenas ela, um banco e uma luz incidente. Na plateia um silêncio
constrangedor. A sensação que, se respirasse, tudo estava perdido, poderia
atrapalhar. Sem nenhum “psssiiuuu”, sem nenhuma norma de etiqueta, sem nenhum
aviso prévio no bilhete de entrada. Um ato ritualístico o qual todos fazíamos
juntos o espetáculo.
Vale lembrar também que
existem vários grupos que “vivem apenas de teatro”, como se diz por aí, e não
possuem outra projeção midiática a não ser sua própria produção e que
questionam o mercado e lutam por mais receita para suas produções, mas que não
se entregam a este discurso ressentido de consumo. Caso de grupos como Grupo Galpão
e Cia. Luna Lunera de Belo Horizonte, Parlapatões e Os Satyros de São Paulo,
Cia dos Atores e Armazém Cia de Teatro do Rio de Janeiro, para ficar com poucos
do sudeste do Brasil.
Um teatro feito para
agradar, para ser visto, para entreter, para divertir, feito para ser consumido,
provavelmente, continuará a disputar público com filmes de Hollywood, com
novelas televisivas, com séries de TV, com canais de internet, sem ofender
muito os modos e os bons costumes da sociedade. A questão já não é apenas o
tempo que as pessoas reservam para as coisas, mas também que coisas as pessoas
reservam para seu tempo. Qual diferença entre em ir a um teatro, assistir a um filme,
uma peça, um show de música ou tomar uma cerveja na esquina se o desejo é
apenas anestesiar os sentidos e não despertar outros tantos sentidos, sobretudo
aqueles que menos se quer tocar?
Há ainda um teatro sem
modos, sem educação, não consumista que pulsa vida em palcos, livros, ruas,
praças, esquinas, escolas, galpões...
Torço para que artistas
da cena continuem a ensaiar muito, não para serem vistos, porém para poderem
ver o que está além do palco, a cada noite e cada dia. Talvez interromper um
clássico, no meio de uma apresentação, seja o ato mais teatral, sincero, ritualístico
e sagrado que nós como atores possamos fazer para denunciar aquilo que limita
nossas vidas a meras representações sociais. Que teatro suportaria isso?
“Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a platéia e a platéia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana.”
Trecho da mensagem de Augusto Boal, em 2009, quando então Embaixador Internacional do Teatro da UNESCO, para o dia 27 de março, Dia Mundial do Teatro.
Para mais leituras:
BOAL, Augusto. O teatro do
oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
ARTAUD,
Antonin. O teatro e seu Duplo.
3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Teatro
de Revista. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Bilontra/trevista.htm
História
do Teatro no Brasil. http://www.baraoemfoco.com.br/barao/portal/cultura/teatro/tatrobr.htm
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