Provavelmente quem vai ler este texto não pode ainda ver do que ele se trata. A história tem 50 anos, mas o acontecimento é incalculável. As personagens possuem superinstintos, mas longe do tradicional clichê dos superpoderes. São humanos, demasiado humanos. Ela se passa no Nordeste; no interior rural do Brasil, mais especificamente, nas Minas Gerais. É uma história de amor de duas, três, quatro pessoas; de umas famílias que já existiam e de outra que se formara às cegas do destino. O primeiro encontro deu-se no Instituto Benjamin Constant[1], no Rio de Janeiro. Mas antes de lá chegar, D. Luiza, viajando sozinha de Fortaleza ao Rio, para em Recife para almoçar junto de outros amigos de viagem, dentre eles um padre. O garçom oferece arroz, feijão, farofa e um pinto (um frango). Sentiu-se constrangida em comer o pinto, em pegar o pinto com as mãos e devorar na frente de gente nem tão íntima. Achou que todos a olhava, a observava naquele momento. Não viu nada, mas apesar disso se sentiu vigiada enquanto comia, ou melhor, enquanto não comia o pinto. Quem é que nunca se sentiu constrangido ao pensar que está sendo observado? “Comi só o arroz, o feijão e a farofa, rodeando, e o pinto ficou.” Ri. “Se pegasse com a mão, poderiam pensar: ‘nossa que menina mais porca.’” Continua a rir, enquanto almoça na mesa junto ao seu marido José Paulo, sua irmã Margarida, seus dois filhos, nora, netos e amigos, o delicioso prato cheio de variada salada, pernil com abacaxi, arroz e farofa.
Corre pra lá, passa pra cá. Trombo na porta. Não consigo achar o interruptor da luz do banheiro, no escuro, percorro minha mão pela parede, sem sucesso. Volto-me ao lado de fora, enfim, percebo o acendedor da luz. Fiat lux no banheiro. E vamos inventando trajetos na casa. Caminham seguros, reconhecem objetos, esquivam-se dos obstáculos à frente. Quando encontram desafios, batem, mas de forma leve: não há arranhado, medo ou roxo aparente. Logo encontram um novo caminho. O lugar já não é o mesmo, é dia de festa, bodas de ouro. Tem cadeira no meio do caminho, tem mesa; gente, muita gente falando. “A falação me deixa um pouco desnorteada.”, desabafa Margarida, irmã da anfitriã da festa. Veio sozinha de Fortaleza para participar dos festejos. Não gosta de ser chamada de dona, “Não sou dona de ninguém.”, risos, muitos risos. Enquanto isso, senhor José Paulo não para: desce degrau, vasa os cômodos, vai ao galinheiro, quase não o vejo dentro de casa, só em trânsito. Será que está nervoso, ansioso para ver tanta gente junta só para vê-lo? Talvez. Fico sabendo que ele é mais tímido que a esposa D. Luiza. Ela conta, de pé, apoiada numa pia de louça verde no canto da sala (característica das antigas casas de fazenda ) que quando recém casada, não a deixavam fazer muita coisa, pensava: “Aonde vim parar.” Sempre tinha alguém por perto. Mas com o tempo, com algumas mudanças e perdas que a vida impõe, foi se aventurando e mostrando que era capaz. “Sentido o cheiro, ouvindo o barulho, assim cozinhava.” Assim inventava o mundo e ia inventando a si mesma. Teve três filhos, todos videntes. Participa ativamente da vida da comunidade, principalmente da religiosa. É catequista. A imagem que mais tem nítida na memória do tempo em que ainda via com os olhos é a da festa de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Comento sobre leitura que fiz de um texto que relata a experiência numa oficina de cerâmica do Instituto Benjamin Constant, com pessoas com deficiência visual adquirida. Que se conecta com minhas pesquisas de modo de invenção de mundo e de si. Eu ali, totalmente conectado com aquela vida. Logo me vem o texto que li: O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida de Virgínia Kastrup, artigo que faz parte do livro Entre composições: formação, corpo e educação (2011), presente da amiga e uma das autoras, Nina. Sentindo. Agora, sim, mais sentido. Outro sentido. Puros sentidos. Heterogêneos sentidos. Híbridos sentidos. Sentido outro.
Margarida diz que a serra de Petrópolis é tão linda como as do Ceará. “O mar é lindo. Adoro o mar.” Alguém interrompe, risonho e provocativo: “Mas Margarida, você vê?” Nem um pouco acanhada, segura do que diz, logo responde: “Bem, eu não vejo assim (gesticula com os braços), mas sinto, aí eu vejo; aí eu digo que vejo: as ondas, a areia. Gosto muito.” Completa. “Eu digo que vejo porque assim é. Se eu pego, sinto, assim é meu modo de ver. Vejo se é bonito ou não.” Continua Margarida. “Não gosto de ser chamada de cega, porque cega é quem não vê, eu vejo!” Margarida criando seu modo de ver o mundo. Alguém tem dúvidas? Eu não. D. Luiza segue compartilhando. “Quando disputei a primeira vez as eleições, recebi 13 votos. Nem o Zé Paulo votou em mim (...) Disse que lugar de mulher é dentro de casa.” Margarida que está do outro lado da sala, sentada numa poltrona, rapidamente argumenta: “Pois é, tem até a Dilma Roussef.” “Tem muita compra de voto, muita troca de favor. Na segunda vez que disputei recebi 17 votos.” Triunfante elenca os que se juntaram aos outros 13 votos anteriores. “Dessa vez Zé Paulo votou em mim.” Conta ainda que nesta época de eleição, afixou uma faixa perto de sua casa com uma frase de um russo, que defendia um posicionamento ético na política. “Zé Paulo disse que ninguém ia ler, mas leram.” Na noite que antecedia a votação, o candidato a vice-prefeito da mesma coligação que D. Luiza, depois de vir de suas investidas da madrugada, em busca de votos certos, disparou foguetes enfrente a sua casa. “Se eles não são capazes de votar em quem conhecem, como vão escolher os que eles não conhecem, governador, deputados, presidente.” Explicando o que aprendeu com a derrota. A importância da micropolítica. Vontade de perguntar se já ouvira falar em Deleuze, na diferença, no rizoma, na potência de vida. Bobagem minha. O importante que, conhecendo ou não, ela atualizava, com aquelas relações, o conceito de sujeito da experiência de Jorge Larrosa e tantos outros estudos e dizeres deleuzianos. “Percebi que aquilo ali não era política, mas foi preciso entrar para saber como é.”
Mas D. Luiza, a senhora tem que conversar com outras pessoas, partilhar esse modo tão especial de viver. “Pois é, o meu psicólogo me chamou para ir ao abrigo conversar com os adolescentes de lá. Jovens com problemas com droga, outros com família desestruturada.” Ri, enquanto mantém a postura ereta e fixamente direcionada a mim, fitando-me o tempo todo. “É, mandou uma combi só pra me buscar, até brinquei que não estava tão gorda assim.” Gargalhamos. “Pedi então para receber o lanche junto aos adolescentes, para me aproximar, pra ver se me aceitavam. Ouvi uma menina comentando com outra que havia recebido toda a prova pelo celular. Comentei com o psicólogo. Eles (psicólogo e outros trabalhadores do abrigo) lancharam em outro lugar, para deixar os adolescentes mais a vontade. Ele me disse que poucas vezes os adolescentes se comportaram tão bem, sem brigas e desentendimentos. Eles me aceitaram.” Ri, meiga e orgulhosa. Uma vida inventada, potencializando a invenção de outras relações, outras vidas.
Eu fiquei feliz. A felicidade de um encontro. A alegria de ser potencializado por aquela vida única que atravessara tantas assim como a minha. “Coitadinha, não gosto dessa palavra.” “Não me sinto deficiente, porque deficiente é quem não consegue fazer nada.” Com nenhum resquício de ressentimento, observa D. Luiza.
A roupa era de cor branca, talvez branco gelo, com pequenos traços acinzentados em alto relevo. Sapatos com uma bela flor de tecido, quase no mesmo tom da roupa. O cabelo tão leve, tão fino, branco com algumas mexas cinzas de dar inveja a qualquer vovó de conto de fadas, teima em não ficar quieto, no lugar. “De castigo”, como ela diz sorridente, enfrente ao banheiro, enquanto espera que senhor José Paulo a atenda para entregar a ele as roupas. “Os brincos e o colar, sabe onde deixaram?” Senhor José Paulo aparece, impecável: blusa azul para dentro da calça, botões em suas casas, cinto; só lhe falta as meias e os sapatos, calçados pouco antes de entrar no carro, porque ainda faltava alimentar e abrigar o papagaio. “Achei este colar aqui, bonito?”, pergunta D. Luiza, já pronta. Priscila só faz os últimos ajustes. “Pronto!” Estão lindos! Um casal lindo, que conserva a mesma beleza de tempos passados guardados nas fotos.
Mas há uma beleza que meus olhos não podem ver. Sou deficiente. Eles não são. O que é? São especiais. Mas fora dessa conversa politicamente correta para deficientes. São capazes de fazer da vida coisa especial. Especialistas, isso sim. São capazes de mostrar e ver coisas que escapam a qualquer olhar atento dos olhos. Nós, neste caso, somos capazes apenas de sentir. Eu só sinto. Como disse Margarida, eles vêem com outros sentidos. Humanos. Que inventam e que mais desafiam a vida do que aceitam. Descobrem na deficiência dos outros a potência de suas vidas. Resta-nos apenas observar, aprender, compartilhar dos festejos. A comemoração termina da forma que acredito, mais agradar D. Luiza e senhor José Paulo, uma missa, um sonoro “Amém”. Que seja para sempre a provocação desta vida em mim, potente, inventiva. Uma vida artística, feita de duas vidas, mais três vidas, mais e mais e mais... é isso: vida!
[1]Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, e acha-se ligado ao Ministério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultas gratuitas à população, possui oficinas de reabilitação e produz material especializado, impressos em braile e publicações científicas. (KASTRUP, 2011) Mais informações acessar http://www.ibc.gov.br
Obrigado Fernando por abrir as portas de sua casa e de sua família. Obrigado Wolnei por ter me acompanhado.
Lembrei de Roberta Stubs dizendo: "Hoje eu encontrei uma vida!" Eu também.
Lembrei de Roberta Stubs dizendo: "Hoje eu encontrei uma vida!" Eu também.
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