domingo, 22 de abril de 2012

“Em que implica pensar que é o pensar (a ação) que produz o corpo e não o corpo que produz o pensamento.”

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Metade – Oswaldo Montenegro


Pensar o pensar como produtor de corpo implica na invenção ilimitada. Hannah Arendt nos ajuda a pensar a questão:
Contudo, o que está realmente solapando toda a moderna noção de que o significado está contido no processo como um todo, do qual a ocorrência particular deriva sua inteligibilidade, é que não somente podemos provar isso [fim da dicotomia entre questões significativas e não-significativas, verdade absoluta, coerências das demonstrações da existência de Deus], no sentido de uma dedução coerente, como podemos tomar praticamente qualquer hipótese e agir sobre ela, com uma sequência de resultados na realidade que não apenas fazem sentido, mas funcionam. Isso significa, de modo absolutamente literal, que tudo é possível não somente no âmbito das ideias, mas no campo da própria realidade. (ARENDT, 2009, p. 123)

Esta análise estruturante, e não da estrutura, da modernidade provoca-nos a pensar não mais em verdades absolutas, superações contínuas em nome de uma novidade sempre vindoura, mas nos encaminha para as possibilidades outras que se fazem ao pensar em outras relações, criando um corpo outro. A afirmação de Arendt pensava na transformação e no entendimento de progresso do pensamento dito Moderno – da passagem do Idealismo Kant e Hegel ao pensamento histórico-dialético de Max e Engels que criara um sujeito capaz de compreender e modificar o processo da História da Humanidade, de realizar as mudanças necessárias para criação de um mundo melhor. No entanto, este modo de pensar cria impossibilidades ao lidar com aquilo que é tão fugidio e que a criação deste sujeito impossibilita, o acaso da vida. Neste momento, fez se movimento para pensar em movimento outro, em processo outro e não em outro movimento e nem outro processo de superação deste sujeito. Porém, o abandono de certezas e de análises históricas como exemplares, um pensamento outro fundamentado na incerteza que a vida provoca, acaba por fragmentar e criar um corpo outro que este sujeito moderno não dá conta. Mas que implica o entendimento de processo outro já não é da ordem de descobrir algo para substituir a Idade Média ou a Modernidade como acreditara as ditas vanguardas, mas problematizar essa tal modernidade, esses tais processos que visa a ordem e o progresso da Humanidade, esse tal sujeito racional, fazedor e protagonista de todos os processos. O que não quer dizer, destruir tudo, mas perceber novas relações. “Problematizar o projeto da modernidade não é suspeitar de sua eficácia, mas questionar seus pressupostos” (KASTRUP apud CLARETO & OLIVEIRA, 2010, p.66). Se tudo pode ser provado coerentemente, apropriando-se de certas deduções, não nos cabe mais provar muita coisa, mas perceber o que tal pensar produz, que corpo é produzido e o que estas novas relações de corpo produz pensar. Atentando para o aspecto desterritorializante do pensar outro. Não é o que se quer pensar, nem um sujeito dono de um corpo que produz pensamento, mas uma produção de pensamento que desestrutura o sabido em desconhecido, que desestrutura pressupostos de corpo antropológico, destacado da natureza, superior a tudo aquilo que não tem corpo pensamente. Neste momento a questão já não é que pensa e o que não pensa, mas, mesmo pensando, o corpo não controla o pensamento, o sujeito não controla o corpo que pensa. Um corpo que produz-se do pensar BLANCHOT pensa
[que] o pensamento pensa aquilo que não se deixa pensar! [que] o pensamento pensa mais do que pode pensar, numa afirmação que afirma mais do que pode se afirmar! Esse mais é a experiência, que somente afirma pelo excesso da afirmação e, nesse excedente, afirma sem nada que se afirme, finalmente nada afirmado. Afirmação onde tudo escapa e onde ela mesma escapa, escapa à unidade. (apud CLARETO & OLIVEIRA, p. 82)

Não se pode controlar o pensamento e sua produção. E provoca marcas, aquelas de ROLNIK, nas quais “não é ele (o sujeito) quem conduz, mas sim as marcas” (p.3)
Uma memória que se faz em nosso corpo, não em seu estado visível e orgânico, mas sim em seu estado invisível, onde o corpo integra aquela textura de que também falei no início, que compõe das misturas dos mais variados fluxos e onde se produzem as diferenças que engendram os devires, devires da própria textura. (Idem, p. 4)

O pensamento como o próprio corpo. Ora, se as marcas são do nosso corpo e produzem movimentos, já não é possível pensar em causa efeito, mas em feito, feitio. Pensamentocorpo tudo junto, mesmo, porque pensamento só funciona por “constrangimento e acaso (...) o que constrange aqui é a pressão da violência das marcas que se fazem em nosso corpo ao acaso das composições que vão se tecendo. (Idem, p. 5) O corpo como parte pensante, como pensamento que funciona pela ação do desconhecido capaz de construir sujeitos, objetos e verdades. Um pensar também capaz de pensar que estas construções limitam certos possíveis.
Se pensamos aquilo que não se deixa pensar, por constrangimento das marcas do corpo, ao acaso, pensamentocorpo tudo junto, não devemos nos fixar em sujeitos, objetos e verdades, pressupostos que tornam a vida impossível, nem mesmo na dor da falta, pois próximo movimento já esta por vir. Limitante é pensar o corpo como produtor do pensamento, porque não é dele que se faz pensamento, mas justamente aquilo que não é in-corporado a ele que o movimenta. Aquilo que o constrange e que inclusive, o questiona: que é corpo? Que é pensamento? Isso é implicante com a dicotomia consciente/inconsciente. Ora, não é um sintoma uma marca, um pensar que grita, que cria corpo neurótico, esquizofrênico, obsessivo? É pensamentocorpo que força limites impostos ao Real.
Pensar em corpo que pensa produz um sujeito dono de vontade. Pensar o pensar como produtor, inventor de corpo é pensar em possibilidades sempre moventes. Principalmente, se pensarmos que não podemos controlar o pensamento. Podemos então, exercitar nossa atenção aos movimentos, buscando sempre a afirmação da vida e por isso, de um corpo outro. Atenção às falsas conciliações, como por exemplo, entre sujeito histórico-dialético e a produção de subjetividades. Pensamentos construídos na diferença acabam por criar corpos da diferença.

Referências:

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. [Trad. Mauro W. Barbosa] – 6ª ed. – São Paulo: Perspectiva, 2009.

CLARETO, Sônia Maria e OLIVEIRA, Marta Elaine de. Experiência e dobra teoria-prática: a questão da formação de professores. In.: CLARETO, Sônia Maria e FERRARI, Anderson. Foucault, Deleuze e Educação (Org.). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade PUC-SP. São Paulo, 1993. Texto transcrito pelo Grupo do Laboratório Ser Terapeuta – Movimento 1, em abril de 2008.

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