terça-feira, 10 de abril de 2012

A difícil tarefa de falar sobre a/na diferença

Quem foi que disse que amar é sofrer?
Quem foi que disse que Deus é brasileiro,
Que existe ordem e progresso,
Enquanto a zona corre solta no congresso?
Quem foi que disse que a justiça tarda mas não falha?
Que se eu não for um bom menino, Deus vai castigar!
(...)
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes...

Zé niguém – Biquine Cavadão

Pensa-se que estão em moda fazer pesquisa utilizando trabalhos como os Gilles Deleuze, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche. Pensadores da[´] diferença [?]... Sempre que falamos sobre algo que ninguém antes disse...
Difícil tarefa a pesquisa. Difícil a tarefa de iniciar um texto sobre pesquisa. Sobretudo, um texto no qual as palavras grafadas não tem sentidos sólidos, não fazem parte do costumeiro uso, não querem dizer aquilo que todo mundo sabe, porém, não quer falar novidade alguma. Pelo contrário, o texto busca por sentidos outros que subvertam aqueles já impostos às palavras. Clama pelo novo, parafraseando Suely Rolnik, naquela breve instante de escritura do tempo.
Para falar novo, no entanto, não precisamos de novidades lingüísticas, mas sem dúvidas de novas relações na língua. Principalmente quando vamos falar do novo utilizando o que há ainda de velho: as palavras. Primeiro movimento de escrita-leitura é nos distanciar de territórios já conhecidos, mas não desconsiderá-los é também importante. É perceber que a organização do espaço já conhecido de modo outro acaba por criar um novo espaço, espaço outro. Como fiz agora com a palavra ‘outro’. O deslocamento a tornou adjetivo a palavra a qual se refere. Ela não mais institui um novo substantivo, que dá nome às coisas desconhecidas, mas descobre qualidade desconhecida do já conhecido, o que acaba de torná-la outro, já não o mesmo, o novo. Por isso não outra coisa, mas coisa outra; por isso língua outra, não outra língua; território outro, não outro território; por isso, modo outro, não outro modo. Não é abandonar uma terra buscando a dominação de outra. É abandonar relações com esta mesma terra que a fazem já conhecida. É lançar-se a pesquisa, a arqueologia, a investigação, ao garimpo, e eis que surge o novo. Como a re-organização dos grãos de areia que, com o movimento tal do ar formam dunas ou tempestades. Não quero com este tempo fixar nada, apresentar nenhuma novidade. Quero propor alguns movimentos, alguns deslocamentos, que por mais in-significantes que sejam, significam outro e acabam por criar o novo.
É risco forçar os limites lingüísticos, do saber, do instituído. Uma vivência deste tipo torna-se latente no texto “Do Corpo Equívoco” de Eugénia Vilela que aqui ajuda a pensar novas relações. Neste texto, a autora aponta para o movimento que há na construção do novo no modo de pensar pesquisa, constituição de saber, Educação, atentando para aspecto paradigmático e epistemológico. Porém, como é risco, em alguns momentos, ela se encerra num paradigma que paralisa seu movimento epistemológico ou faz escolhas epistêmicas caras ao paradigma que propõe. Certo, no entanto, é sua tentativa, o que é mais válido ao se tratar da pesquisa, da investigação, de ultrapassar os limites do já conhecido, de torna possível a vida.
A pesquisa de Vilela pretende, como mesmo diz, “analisar a dimensão simbólica da relação do homem com o sentido concentracionário de si e do real, pela ligação com o corpo” (VILELA, 1998, p. 9). Pretende articular outra possibilidade de relação e concepção de corpo, dizendo ser este um mapa dos territórios discursivos que ordenam e ajudam definir um paradigma. Apresenta o corpo no sentido antropológico, configurado pela relação entre o conhecimento e a verdade. Aponta o pensamento da Modernidade como instituinte de um paradigma racionalista que desenha a realidade e a verdade de forma simbólica, articulada com uma lógica do conhecimento. Quer apontar para dicotomias que são caras ao corpo, entendido por uma moral técnico-científica fragmentária e simbólica que não dá conta de um corpo vivo, mutante. Na contemporaneidade, delineia-se o corpo sob o signo da resistência e da transgressão, como um lugar-simbólico-concreto-de-verdade.
Para tentar dar inteligibilidade às suas inquietações, abandona os mapas e propõe uma investigação cartográfica[1] daqueles territórios já conhecidos como verdade, razão, conhecimento, real, educação que torna o corpo como objeto de uma racionalidade equívoca. Como ferramenta de escavação utiliza-se dos trabalhos de Michel Serres , Michel de Foucault por considerá-los realizadores da “primeira ruptura relativamente à racionalidade biológica da ciência” (ibidem, p. 12), refletindo em disposições político-epistemológicas. Aliando, ainda a trabalhos de Henri Atlan e Edgar Morin. Ela considera o corpo como uma construção moral e cultural, tensão entre a evidência e o simbólico, não um objeto dado ao conhecido fruto de uma racionalidade sem sensibilidade.
“Ora, tanto Serres – por via crítico-epistemológica – como Foucault – por via crítico-genealógica – procuram repensar a tradicional relação que, na modernidade, se institui entre a ordem do saber, a ciência, a racionalidade e o homem.” (ibidem, p.12)

Nos trabalhos de Serres e Foucault, o corpo da modernidade aparece como vítima do saber e do poder, fruto da relação íntima entre a violência e a verdade da racionalidade bio-técnico-política, um processo de disciplinarização dos corpos. No entanto, a contemporaneidade, é apontada por Vilela como espaço aberto, “tomada de consciência de um novo estado do mundo” (ibidem, p. 15) o que faz com que o corpo passe de um lugar-comum para lugar-incomum ou lugar-simbólico-concreto-do-possível. Propõe, então, a desconstrução do corpo entendido na modernidade para a reconstrução de um corpo capaz de dar conta da complexidade da contemporaneidade, “construção de uma teoria do lugar contemporâneo tangente ao corpo”.
Para investigar as novas relações do corpo, ela não define real, por não achar possível com-preende-lo. Por isso prefere um mundo percorrido por diferentes olhares, não coincidentes, como pedagogia e ciência. O mundo é um conceito criado pelo homem advindo da palavra que é capaz de recortar e emprestar ao real significado, criando tempo passado e tempo futuro. O mundo é então criado por um olhar do humano, o conhecimento não é um olhar-mudo, e quando um conhecimento se impõe, “a visão do mundo torna-se imperceptível enquanto parcela do olhar possível” tornando-se ontológica, criando-se um modelo. A escolha de um modelo hegemônico impõe a busca pelo mesmo em oposição ao outro. Na modernidade, a racionalidade técnico-científica se afirmou na tradição logocêntrica, ou seja, como única forma gnosiológica possível, definindo, dando voz, inclusive, ao que é verdade e ao que é real. Todos aqueles equívocos à regra acabam sofrendo exclusão, são “objetos mudos detentores de um sentido secundário”.
E, na busca por um outro possível, para além da hermenêutica e do estruturalismo, como propõe Foucault, forçando os limites  impostos que determinam o real e a verdade, e supondo que todo conhecimento é inconcluso, ela aponta a racionalidade aberta – na qual o aleatório, o incerto, o complexo – forçam os limites impostos. O limite gera a lógica da exclusão para racionalidade discursiva (técno-científica) e configura-se, na racionalidade aberta, como espaço-branco da passagem. Isto é, aponta para uma indefinição radical do humano – simbólica e biofísica – indicando a complexidade da condição humana, que para Vilela, repercute também no “espaço da educação”. Se na modernidade a educação fora concebida como um estado de dominação, passa na contemporaneidade, “como situação de libertação, sob o movimento de transgressão, intimamente próximo ao intolerável” – espaço simbólico no qual se articula os acontecimentos e o campo transcedental (Serres); jogo estratégico entre liberdades, traçado entre dominação e resistência (Foucault); aproximação da concepção de sobrenatureza em que valor e verdade têm como critério o possível (Atlan) – tendo a pedagogia como um lugar do possível, reduto contra o esquecimento.
a racionalidade aberta torna possível, pondo em causa a figura metapadigmática da epistemologia institucional contemporânea. Epistemologicamente, traduz-se pela paixão das passagens. Gnosiologicamente, traduz-se pelo conhecimento íntimo. Antropologicamente, traduz-se pela integralidade. (ibidem, p. 177)

Tem-se um equilíbrio instável entre o manifesto e o que se esquiva à manifestação, no qual, o pensamento deixa de ser de fora, ocupando a linha de sombra, o que leva a indefinição radical do humano (questão antropológica), que, se continua a capturar simbolicamente o mundo, esta captura não é definitiva. Isto gera a incerteza fundamental donde emerge a complexidade humana, refletindo no engendramento da realidade do humano e da natureza.
Essa complexidade reflete num outro movimento de verdade do campo transcendental, na qual se configura transversalidade epistemológica solidária, uma epistemologia do transporte, da importação de conceitos entre antropologia, epistemologia e ética, sob um modo de conhecimento compreensivo e íntimo.

Trata-se, afinal, de traçar uma crítica do conhecimento enquanto tentativa de o mesmo reduzir o outro a si mesmo, e convexamente, uma crítica da ontologia enquanto tentativa de absorver o outro numa totalidade. (ibidem, p. 180)

Com este trabalho, Eugénia Vilela, delineia uma crítica ao pensamento técnio-científico delimitado por uma epistemologia sob paradigma excludente que retira do homem o corpo, transformando este em mero objeto do conhecimento simbólico, sem vida. Ao mesmo tempo, aponta para uma racionalidade aberta, típica da contemporaneidade, no qual o conhecimento transcende os limites do instituído, transformando o corpo em espaço de transversalidade, do encontro entre corpo significado e corpo existido.
Progressivamente, ao longo do século, as topografias do saber e do poder fracturaram-se. E novos territórios exigem um pensamento-outro que é, simultaneamente, uma sabedoria e uma esperança – enquanto elementos de uma forma-outra de pensar. No risco e na incerteza. É precisamente aqui que emerge o lugar desde onde se desenha um percurso inédito do pensamento: um pensamento em que o aleatório, o incerto e o complexo são a base de todas as expressões da racionalidade. (ibidem, p.176)

Seguir por um “percurso inédito do pensamento” desdobrado em pesamento-outro reserva riscos e incertezas. Neste caminho, as palavras não têm sentidos próprios e suas relações devem ser investigadas. Talvez por isso seja tão complexo, incerto e aleatório este pensamento, um pensamento da diferença, fruto de uma fratura sim, mas não ao longo do tempo nem ao longo dos séculos, mas do tempo.

A mudança de paradigma e por isso, de ordem epistêmica, que a diferença promove exige abertura aos sentidos outros. Não se trata de mudança apenas perspectiva, em relação ao único sentido tão privilegiado em nossa sociedade hiperindustrial da imagem: a visão.  Mas “(...) valorização de nossos outros sete sentidos (tato, olfato, audição, paladar, equilíbrio, percepção espaço-temporal, tesão)” (AZAMBUJA, AQUINO & MEDEIROS apud AQUINO & MEDEIROS, 2011, p. 100). Mudança de relação, com o corpo inteiro que, por tanto, fratura, fissura o saber estabelecido em um não-saber, em novo e não novidade, não substituto a, mas com, na diferença. Não uma “diferença sem conceito”, como argumenta Deleuze:
Encontramo-nos, pois, diante de duas questões: qual é o conceito da diferença que não se reduz à simples diferença conceitual, mas que exige uma ideia própria, como uma singularidade de Ideia? Qual é, por outro lado, a essência da repetição que não se reduz a uma diferença sem conceito, que não se confunde com o caráter aparente dos objetos representados sob um mesmo conceito, mas que, por sua vez, dá testemunho da singularidade como potência da Ideia? (DELEUZE apud AQUINO & MEDEIROS, 2011,  p. 182)

Deleuze problematiza a dificuldade de estar na diferença, complexidade que implica nas escolhas categóricas de Vilela e que merecem atenção. Não se trata, pois, de uma nova mudança hegemônica, simbólica, epistemológica e paradigmática, que se construiu progressivamente ao longo do século em substituição a um velho conhecimento. Pelo contrário, cada época, se assim considerarmos o tempo, tem sua diferença constituída pela repetição de seu modelo hegemônico.

Uma possibilidade outra para usar uma palavra como um testemunho “da singularidade da Ideia” é desassossegar seu uso ou abandonar as velhas roupas que já tomaram forma de um corpo impossível, como provoca Fernando Pessoa[2] ou “lavar a palavra” como sugere Viviane Mosé[3]. Por em movimento a palavra, retirar do sossego do “inconsciente epistemológico” que reconhece numa lógica única o pensar, que por economia, já não pensa, só reconhece. Desassossegar o pensamento com não-sabido. Como disse Deleuze, “só se pensa porque se é forçado”. Pensar. Retirar a roupa da palavra ou alvejar, por de molho, esfregar, por ao sol, porque existem palavras que “são muito encardidas pelo uso”. Requer um tempo estendido, porque para reconhecer uma palavra “limpa”, para um novo uso é necessário conviver por um tempo com ela, para que ela plante na carne. Para saber se já está limpa, veja se é “uma palavra possível”.

Algumas palavras que aqui merecem ser despidas ou devem ir ao tanque para desassossegar o uso proposto por Vilela são novo, contemporâneo, metáfora e corpo.

Água no novo. Sem dúvidas, ou com muitas duvidas, Serres e Foucault não foram os primeiros a realizar a façanha tão especial de relacionar história e interpretação do real. Há também Nietzsche, Deleuze, Erasmo de Roterdã – que em 1508, elogiava a loucura, relacionando história, mitologia, saber, racionalidade, loucura e real – e outros tantos.

Na diferença, ser o primeiro não é importante, nem possível ao considerarmos o novo como um movimento de junção e embate de forças que sempre existiram, mas que tomam novas configurações e que não dependem do desejo do sujeito, pelo contrário, sujeita-o.

O que nos força é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que vivemos e que são a própria consistência de nossa subjetividade, formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. (ROLNIK, 1995, p. 1)

O novo, o inédito aqui não quer dizer inaugurador, mas fruto da diferença, das novas relações possíveis entre forças. Na guerra de forças, o que implica é a relação entre quantidade (dominantes e dominadas) e qualidade de forças (ativas e reativas) na afirmação da vida possível.

O pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora.
Quando é este o trabalho do pensamento, o que vem primeiro é a capacidade de nos deixar afetar pelas forças de nosso tempo e de suportar o estranhamento que sentimos quando somos arrancados do contorno através do qual até então nos reconhecíamos e éramos reconhecidos. (Idem)

Talvez os que vieram antes destes intitulados “primeiros” por Vilela ainda não dispusessem de forças (quantidade) suficientes para impor domínio. No entanto, como forças ativas, de afirmação da vida “como potência criadora” vivem no tempo e fazem-se vistosos no agora como Nietzsche ou Roterdã. Novo aqui é capacidade de re-organizar forças que já existem, e não a substituição de um objeto ou conceito velho por um novo. Neste sentido, o pensamento de Roterdã exposto no livro “Elogio da Loucura”, datado em 1508, é novo por se deixar afetar por forças de seu tempo e de suportar o estranhamento que o arranca dos contornos reconhecíveis do padrão racional, tecno-científico, tornando-o contemporâneo, fazendo necessidade de mais água para lavar esta palavra relativa ao tempo.

Em trechos do texto de Vilela como “uma outra configuração significante da racionalidade, íntima da contemporaneidade”(VILELA, 1998, p. 14), “a tomada de consciência de um novo estado do mundo” (ibidem, p. 15), “lugar contemporâneo tangente ao corpo” (ibidem,p.16) a palavra contemporâneo e todo seu campo conceitual convoca pensamento-outro. Lidar com tempo como logos instituído, seqüencial, como se a modernidade fosse responsável por desencadear todos os processos vividos por nós, hoje, na dita contemporaneidade é possibilidade limitante. É como se, agora, pela primeira vez na história, como nunca visto antes, tivéssemos a liberdade instituída e difundida, inaugura por aquele ou este pensador. A nossa frente, haveria apenas um futuro brilhante, progressista e positivo.

Equívoco deste corpo texto. Não foi apenas neste logos contemporaneidade que se produziu pensamento da diferença, novo. A diferença é fruto do estranhamento e do embate de forças de seu tempo. Se não precisamos pensar a sucessão de acontecimentos, causa e efeito, se não buscamos controlar, mas se estamos no risco, no incerto, no aleatório, em plena guerra de forças, tensionando forças que sempre existiram e que se relaciona, mas não se substituem, delimitar um tempo cronológico, sucessivo já não faz sentido, neste paradigma, fazer progresso é da ordem do impossível.

Talvez nos ajude a pensar tempo na/da diferença o conceito de contemporâneo percorrido por Georgio Agamben como aquilo que não se identifica com seu tempo, e por isso, o novo, o inédito, o singular.

(...)Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, neste sentido, inatual; mas exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58-59)

Considerar contemporaneidade como sucessão epistemológica da modernidade torna-se um equívoco para um pensamento-outro que pretende ser arrancado dos contornos do reconhecido impostos por uma racionalidade tecno-científica que assassinara Deus. A modernidade acreditara ter matado Deus, mas que é tão poderoso, como acredita seus seguidores, que ressuscita, de corpo e alma, em esquinas, galpões, cinemas, garagens, angariando mais ovelhas em demonstrações de show de fé, prometendo, ainda, um Reino Eterno de abundância, crendo no poder divino caro, pago, comercializado em CD’s, toalhas, medalhas, revistas, canais de assinatura. Um comércio não muito diferente daquele das indulgencias que revoltara Lutero, que criara os Protestantes contra a Igreja Romana.

Pior. No desenvolvimento da modernidade, o Estado toma forma e se distância da fé. Um Estado laico surge, mas reserva sobre suas cabeças a imagem do crucificado, proibi o uso do véu de Alá, institui o Religioso do ensino, o hino ao “pai nosso” dos órfãos da escola que une Protestantes que protestam em plenário midiático a alienação dos direitos das minorias, através de um discurso moral hegemônico.

É da ordem do impossível existir contemporaneidade, neste sentido. Deus é nosso contemporâneo porque sobrevive a modernidade e a contemporaneidade. Ele é capaz de aprender o desejo delirante, como ser divino que é, do homem de se tornar eterno, imortal. Esta ficção contemporânea nos cria impossibilidades ao pensar que tudo está criado, nos enchendo de esperança a caminho de uma pós-contemporaneidade abundante. No pensamento-outro Deus é contemporâneo, não da contemporaneidade, porque é inatual. E requer fuga.

O trabalho na/da diferença torna-se um exercício de constante atenção: 11 sentidos e muito mais! Pensar em racionalidade aberta é pensar, contudo e tudo mais, em algo em construção, que cria ficções, verdades, mas momentâneas verdades, não deuses imortais. O equívoco de uma epistemologia baseada num paradigma racionalista tecno-científico não é criar verdades ou ficções, mas desejar perpetuar tais invenções em absoluto, é fazer da Ciência algoz de Deus. Vamos, então, ao outro balde que tem mergulhada, de molho, a palavra metáfora usada por Vilela, encardida pelo uso padrão hegemônico. Lavando-a, despindo-a de todo significado menor de representação daquilo que não é, de figura de linguagem de semelhança que diz outra coisa e não sua própria expressão, deixemos com sua “sujeirinha”, com sua verdade não dita de outra forma, com sua singularidade, com sua inatualidade que contamina os Corpos[4] através de Nietzsche:

O que é, portanto verdade? Uma multidão móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações humanas que foram poeticamente e retoricamente alçadas, transpostas, ornadas, e que, depois de um logo uso, parecem a um povo firme, canônicas e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós conhecemos que o são, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força sensível, peças de moeda que perderam o seu cunho e que são consideradas a partir de então não já como peças de moeda mas como metal. (NIETZSCHE apud AQUINO & MEDEIROS, p. 24)

Assim, textos literários não se instituem como metáforas, como uma figura de linguagem passível de reinterpretação através de um processo de semelhança, de tradução para uma linguagem padrão.  Metáforas são também verdades. Ou, se ainda figuras de linguagem, tudo que se considera verdade é também uma metáfora que perdeu “sua força sensível”. Metáforas como uma verdade possível, singular, única, que não se é capaz de dizer de outra forma, é verdade em forma-outra. No entanto, não são verdades absolutas, mas verdades ou metáforas que estão em constate movimento, ora mais perceptível por este ou aquele sentido do corpo.

Para encerrar esta lavanderia, peguemos corpo que aqui também é outro. Na diferença o corpo é despido do simbólico, lavado do ranço humano que o transforma em especialidade da antropologia. Num pensamento-outro, o homem já não é o centro, mas também não está fora dele como no teocentrismo, ele é só mais um corpo entre tantos corpos que formam um corpo outro. Um platô junto a outros platôs do rizoma (DELEUZE & GUATA
TARI, 1995-1997). A pedagogia é um corpo, assim como a filosofia, a verdade, o texto, a porta, a ideia, a linguagem, o homem, a mulher, a casa. O corpo como rede, conectado a outros corpos, abandonado da ideia de organismo, um corpo sem órgãos. Rizoma. Um organismo desfeito, aberto às experimentações, desterritorializado, nômade. “Desfazer o organismo nunca foi matar-me, mas abrir o corpo às conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções (...)” (Ibidem, p. 22) Não é objeto, não tem dono, sem posse. “Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas.” (Ibidem, p. 9). Por isso não cabe aqui falar de objeto construído ou desconstruído, perde esta característica impossibilitante, mas torna-se uma prática e por isso, movimento de construção e des-contrução contínuo de relações. Não é mais um corpo de um sujeito que é simbolizado ou que o simboliza, é processo, agenciamento, circuito, conjunção. “Assim, o corpo sem órgãos nunca é o meu, o seu... É sempre um corpo.”(ibidem, p. 22).

Falar, estar, partir da diferença torna-se tarefa complexa, incerta, arriscada, aberta. Com seu corpo equívoco, Vilela consegue dar língua e demarcar certos territórios nascidos da diferença, no tempo, inatual. Evidencia também armadilhas perigosas que podem fazer da diferença apenas diferença sem conceito, que não dá ao conceito testemunho da “singularidade como potência da ideia”. O território da diferença propõe sim uma mudança paradigmática e epistemológica, mas não propõe substituição ou verdade absoluta. Mas pretende investigar os territórios e enxergar as linhas de fugas, forçar limites, procurar relações outras no já conhecido. Por isso, desassossegar, retirar roupas velhas ou lavar as palavras torna-se tarefa necessária para a diferença que surge da repetição do mesmo. Abandonar verdades e/ou leis instituídas e instituintes, que demarcam contornos reconhecíveis e reconhecidos, num movimento aleatório do pensamento de afirmação da potência de vida, cria. Acreditar numa racionalidade aberta, mais que instituir uma abertura, uma liberdade ideal para criação no agora, é saber que a diferença se faz na repetição do mesmo e que é risco querer instituir algo absoluto. As forças estão sempre atuando, por isso, nada está pronto, tudo está em vias de ser feito. Devir. E se Jesus voltasse a terra seria novamente crucificado.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?: e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

AQUINO, Fernando; MEDEIROS, Beatriz de. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.

DELEUZE, Gilles. Como criar para si um corpo sem órgãos. In.:______. e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34.

ROLNIK, Suely. Ninguém é Deleuziano. 1995. Disponível em http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf Acessado em 06/04/2012.

VILELA, Eugénia. Do Corpo Equívoco – Reflexões Sobre a Verdade e a Educação nas Narrativas Epistemológicas da Modernidade. Braga-Coimbra: Angelus Novus Editora, 1998.


[1] Cartografar é uma atividade típica da geografia, apropriada por Gilles Deleuze como método de pesquisa que visa  a investigar territórios já mapeados em busca de linhas de fuga, no qual há implicação do cartógrafo. Para ver mais Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.
[2] Referência ao "Livro do Desassossego" – do heterônimo Bernardo Soares, de Fernando Pessoa.

[3] Viviane Mosé. Receita para lavar palavra suja. In.: http://pensador.uol.com.br/frase/MjQ4ODc2/. Acessado em 04/04/2012.
[4] Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, PPG – Arte/UnB.

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