Vou contar uma história de quatro ou cinco pessoas, de suas vidas e de suas mortes. Ou quase isso. O primeiro, João, era homem temente a Deus, ia diariamente a qualquer culto no qual se falasse de vida e pós-vida. Acreditava firmemente no que se podia dizer paraíso.
Dia desses, atravessando uma rua João fora atropelado. Nem agonizou, morreu. Disseram alguns que fora benção divina. “Nem teve fim de vida” – um faz sinal de cruz sobre o corpo e beija os dedos. Deixa quatro filhos, uma mulher e outras tantas coisas por não se realizar.
O outro homem chama-se Pedro (que podia também ser mulher, nada de querer ser heteronormativo). Tá bom, dizem alguns, que nascera Pedro, no entanto, mais tarde da vida, descobriu-se Clara. Clara era uma moça, que com muitos conflitos – quem não tem os seus – adorava esportes radicais. Motocross, Bungee jump, asa-delta, esqui, montanhismo, escala. Dia desses, após vislumbrar um lindo horizonte, um sol nascente como nunca antes visto – único, como todos os dias o são, no mundo todo – pulou mais uma vez de seu penhasco. Habilidosa que era, esqueceu de fechar o cinto do pára-quedas quando se lançava de um avião a 6 000 m de altitude. Morreu deixando um cachorro cinza de olhos azuis, de raça que não sei especificar, mas não parecia vira lata, apesar de uma vizinha jurar que fora achado numa lata de lixo.
José, vendo TV – um desses programas que fazem da tragédia seu clímax constante, que não deve ficar atrás de nenhum espetáculo do antigo Coliseu Romano, certo ponto anestesia seu corpo, faz desacreditar numa saída possível para a barbárie – não conseguia parar de repetir “Deus me livre”. Fazia, repetidamente, um sinal de cruz sobre o corpo. Nos intervalos, checava se portas, janelas, registro do gás, instalações elétricas estavam funcionando bem. Vira, há algum tempo, que um senhor teria sido atropelado por um garoto alcoolizado, quando atravessava a faixa de pedestres – um garoto de uns 24 anos de idade que fugira sem prestar socorro, e que a família era de gente rica e que freqüentava sempre as colunas sociais. Noutro dia de programação da violência espetacular, vira uma transexual ou um transexual – o apresentador não soube nomear aquele corpo, mas o sabido é que, apesar do nome aparecer como Pedro Valadão Pedrosa, a foto do RG apresentava uma imagem feminina, de longos cabelos ondulados cor castanha, face rosada e sorriso quase a la Mona Lisa – teve o corpo socorrido, já sem vida, com todos os ossos quebrados pelo impacto com a terra, após ter saltado do avião e ter falha no equipamento de segurança do pára-quedas.
José se sentia aliviado, enquanto condenava tamanha ousadia de Pedro, que gostava de ser chamado de Clara, claro. “Era isso mesmo que ia acontecer, fica brincando com a vida”. Resmungava, enquanto se afligia com a demora da filha que fora à padaria há mais de cinco minutos e não voltara. Enfim, barulho na fechadura. Pensava na má sorte e nos mistérios dos desígnios de Deus em relação a João, principalmente a sua família que ficara órfã e sem um provedor.
Para se proteger da morte... para se proteger da vida, José semanalmente ia a várias igrejas cristãs, apesar de não dispensar uma visita ao umbanda ou uma dessas reuniões secretas que todo mundo sabe. Chegava em casa sempre antes das 22h, pois, para ele, a rua já não estava tão segura depois das dez. Olhava repetidamente para todos os lados, ao atravessar a rua, mesmo na faixa de pedestres e só se movia quando tinha certeza de que os carros estavam parados. Ficava sempre atento a qualquer pessoa que se aproximava e nunca sai de casa ostentando relógio, carteira ou celular. O carro nunca ficava na rua, sempre na garagem ou quando mais cômodo, usava táxi. Mas se sentia mesmo aliviado quando levava a boca, antes de dormir, um objeto mínimo que descia escorregadio pela sua garganta com a ajuda de pouca água e muita tensão. Acalmava pernas, espasmos dos olhos, diminuía as lavagens das mãos e as checagens de portas e janelas. O pânico controlado e a nova visita ao psicanalista marcada para um novo dia seguro, guardado em casa.
Em algum lugar vivia kyw, um sujeito aparentemente normal, de estranho só tinha o nome, repetia sempre com um sorriso largo. Gostava de esportes radicais, temente a Deus, como alguns dizem, mas sem uma religião que se pudesse nomear. Uns até achavam que tinha parte com alguma entidade maligna. Já tinha 70 anos nada aparente em seu rosto ou corpo vigosoros, professor universitário aposentado de nutrição. Não costumava fazer boas ações, mas não dispensava um bom dia a quem passasse por ele pela manhã. Já havia escapado de três acidentes, chegara até ficar em coma por semanas. Não acreditava em vida pós morte. Mas também não duvidava. Certo dia, quando comia uma empada, engasgou-se com uma azeitona. Fora levado às pressas ao hospital por sua ex-mullher, pensou que ia morrer. Fizeram traqueostomia. Sem lesão no cérebro. Mais uma vez escapara da morte, ou do que achava que fosse a morte. Viveu ainda muito, fez algumas escaladas, varias visitas ao jornaleiro, à padaria, a shows de sertanejo. Adorava Sergio Reis. Num dia de chuva, ou de sol, ou de nuvens claras, ou noite estrelada, tivera uma forte... “caiu duro no chão”, contou a moradora do 9 andar.
Sobre José não sei como morreu e que, apesar do cuidado, do pânico, da vida, morreu ainda angustiado e com medo da morte. Não sei dizer muito sobre a vida de nenhum deles, apenas sei que morreram todos os quatro. Apesar de vidas tão distintas e crenças tão peculiares morreram, sem nenhuma cerimônia que não fosse anunciada pela incerteza da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário