quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Desabafo de um careta

Nunca fumei maconha.
Não tinha problemas para dormir. Duas vezes aprovado nas primeiras colocações em universidades públicas, cursando toda educação básica também em escola pública.
Porre, só tomei depois dos 20.
Sempre fui muito romântico, transei pela primeira vez aos 22.
Como muitos amigos que foram pais e mães adolescentes, fui muito religioso e temente a Deus e de suas paixões.
Nunca tive uma família muito “ajustada”: adultérios, uso indiscriminado de drogas, assassinatos por motivos banais, incestos, mortes, suicídios, prisões, depressão, internação em hospitais psiquiátricos, preconceito.
Prefiro ser ativo. Fetiches, apenas os mais óbvios, ou nenhum.
Essa minha caretice, apesar de tudo, devo a essa vida capitalista ou anti-capital.
Nunca tive dinheiro para um beck. Sempre tive medo de não poder sustentar meus vícios. Porque esses eu tenho.
Devaneios nunca me faltaram. Noites inquietas, em claro, nunca me faltaram. Meu organismo, muito careta, nunca aceitou bem drogas para dormir. Pareciam, na verdade, fazer o efeito contrário.
Então, passava horas entre coração acelerado, respiração encurtada, dores na nuca, suor, vultos negros disformes, escuridão visual, tonteira, atenção dilatada. Quase um treinamento artístico sem obra. Vai ver foi. Pois cria-se muito em situações de pânico.
Da maioria dos porres que tomei me sobraram apenas poucos flashs, histórias de outros e muitas lembranças de ressaca. Camas desarrumadas habitadas por desconhecidos. Criação. Acho que foi instantânea, fica só para aquele momento.
Já as noites mal dormidas, as ansiedades de aparência de ser, as palpitações desarticuladas, essas estão sempre na memória, capazes de serem re-produzidas a cada momento.
Para cheirar uma carreira, injetar na veia, fumar uma pontinha, tomar um docinho, fazer a função, são tantos atravessadores, são tantas pessoas volvidas, são tantas vidas tomadas, de assalto, traficantes, tra-ficadas (ficantes pelo caminho, sem caminho, por tantos caminhos...) que quando se esta no conforto de seu loft, do seu apart, do seu quartinho minúsculo, mofado, do seu particular espaço, na festa do fim de semana, na casa do amigo desconhecido, no fim de um dia estressante – porque afinal de contas, merecemos descanso depois de tanto trabalho, de tantos atravessamentos. Ligamos a TV, acessamos mais uma vez a fan Page favorita, logamos no face, de cara, assistimos, passivos, anestesiados a mais uma notícia de roubo, de apreensão de entorpecentes, invasão de favela, morte de policiais, corrupção nas esferas governamentais, de morte na esquina, de execução sumária pela polícia.
Não se sentir responsável, porque a responsabilidade já está tão diluída, tão compartilhada e curtida por tantos, mortos, que dichavam aquilo em notícias cotidianas, que a anestesia é plena. Puro nirvana.
Percebo como sou careta.
Talvez se tivesse pouco mais de dinheiro achasse tudo isso mais convincente, conveniente. Consumiria estes devaneios alheios.
Maldita vida capitalista que não dá direito a uma fantasia gratuita. Ou na liquidação, dá-nos apenas uma: felicidade descartável da ponta de estoque da última estação.
Pior, por vezes, vendo tantos anestesiados, tantos entorpecidos, sinto-me ainda mais responsável. Não como um cristão, que busca a ressurreição sacrificando um por todos; mas como muitos que sacrificam-se por poucos. São números, estatísticas, levantamentos, pesquisas, dados, muito dados. Outros vendidos.
Sou careta. Faço por vezes careta.
Uma folha de coca colombiana não custa nem um terço do valor final de sua transformação em pó.
Maldito capitalismo que não dá direito a uma fantasia comum.
Uma vida da favela, da esquina de Diadema, no presídio super lotado, do morro, da comunidade, vale menos que uma do prédio de alta classe, média burguesia consumista medrosa, em seus portões fajutos e seus blindados de hipocrisia que acreditam que democracia é obrigação de votar nulo de dois em dois anos.
Maldito capitalismo que não da direito ao pensamento. Maldito capitalismo que transformou pensar em caretice.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A loucura dá show. a louCURA da arte.

A falta de compromisso com uma lógica vigente e a fundação de uma lógica outra há muito seduz pensadores artistas de diferentes áreas que, na loucura, potencializam a vida. 

foto: Rafaella Pereira de Lima

Uma performance re-vivida. Mostra de Curtas Performances do Mezcla – Juiz de Fora, evento que já faz parte do circuito paralelo do Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. Três edições seguidas.  Cartografia do Show da louCURA 3.
foto: Claudia Meireles
Uma lógica outra. Uma descompromissada relação com a lógica compro-metida. Eis a sedução da loucura que é alternativa de cura para a vida adoecida do pensar com a cabeça.
No advento do triunfo do que conhecemos como pensamento racional, um homem bem relacionado, num discurso eloqüente, destoa, por vezes jocoso e outras, libertador. Erasmo de Roterdã usa uma das formas mais lógicas – a linguagem – para tornar inteligível certo pensamento zombeteiro ao amigo Thomas More, conseguindo dar voz que ecoa desde 1508: O Elogio da Loucura. “Ireis, pois, ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Sólon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura.” (ROTERDÃ, p.16)
A loucura tomou corpo dado por deuses do Olimpo. Agora, em tempos de realities shows, com tamanha exposição de artistas massificados, toma para si o foco e performa seu próprio show de louCURA!
                   *      *                                                           *
Que pode a loucura?
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Criar! Infinita possibilidade de invenção. Ilimitada criação! Questiona o saber instituído da morte dos sentidos. Deseja vida, busca saúde, a cura para o corpo cansado de ser guiado, negado, domesticado. Em performance dispara contra, perfura conceitos, cria. Possibilidade de vida!
“Eu vim de longe pra encontrar o meu caminho. Tinha um sorriso e um sorriso ainda valia, achei difícil a viagem até aqui. Mas eu cheguei, mas eu cheguei.” (música A viagem – livro de canto do Encontro de Adolescentes com Cristo)
A loucura vem de longe, de paragens desconhecidas, faz livre associação de afetos na criação: música, mala de couro cheia, texto “Solidão (o mundo é merda)” de Edson Costa Duarte [vivo], loucamente criativo, cadeira iluminada por um foco de luz arredondado, diferentes óculos coloridos, leque de penas rosas, vestido básico preto, jaleco branco. Muitas pessoas observam, estão presentes. Hospício da criação.

“(...) um dos traços característicos da linguagem da performance é o uso do collage como estrutura.” (COHEN, p. 60)
É uma colagem a loucura. Gruda na pele. Gruda pele. Cola palavra no corpo. Cria corpo de palavra grudada: corpoalíngua[1] e pensamentocomocorpointeiro[2]. Música chiclete que cisma ficar na cabeça. Cola no corpo a roupa de conceitos que vira armadura que impede o movimento. Loucura é nu!
“Eu vim por causa daquilo que não se vê. Vim nu, descalço, sem dinheiro e o pior. Achei difícil a viagem até aqui, mas eu cheguei, mas eu cheguei, mas eu chegay, mas eu chegay.”
Corpo nu. Volúpia não sexista. Nu. No palco. Nu loucura. Que cura e pensa corpo artista outro. Nu palco. A loucura é o desnudamento da razão. Todo louco veste o nu de seus desejos cotidianamente. Nu mente. Na mente. Nu.
“Tento, em vão, procurar algumas palavras que, de alguma forma, esbocem algum sentido às perguntas que nos inquietam a mente... Mas, como apaziguar a inquietude da alma com palavras? Serão elas suficientes para acalentar a alma de quem convive diariamente com a tênue linha que separa (e ao mesmo tempo aproxima) a loucura da razão?” [3]  
foto Claudia Meireles
foto Claudia Meireles
Inquietação. Show da louCURA 1, 2, 3 e já marcado o 4. Paixão. Volúpia. Criação. O corpo assalta a cena, toma a razão sabia-mente.
 
“Segundo a definição dos estóicos, sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. (...) Além disso, [Júpiter] relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando o resto do corpo presa das desordens e da confusão.” (ROTERDÃ, p. 28)
Performance. Confusão. Com-fusão com teatro. Eis a vida! Outra alternativa é vivida e questiona a loucura da razão. Um corpo que cria todo inteiro. Parafraseando Nietzsche, a razão é apenas uma parte de uma razão maior que é o corpo. Que corpo? Que teatro? Que performance? Desde o primeiro show, uma confusão de conceitos, um pré-conceito a respeito de performance. Mas nas curtas performances achei um pouco teatro. Chega o momento de limitar, no efêmero, nu efêmero,  limitar um pouco o ilimitado da arte da performance, que pode ser fuleiragem[4].
Diferença entre teatro e performance:
O ator de cueca branca afirma:
- Eu estou nu!
O performer, sem roupa, observa:
- Eu estou vestido.

A pele. Vestido do corpo. Corpo vestido de pele. Um corpo. A pele é o maior órgão do corpo. Sensacional! De muitas sensações. Reveste e investe um mundo, o dentro-fora. É o mais profundo, afirma o filósofo. O toque de dentro com o fora. O fora do dentro. Constante atualização de sentido. Coisa de pele, sabe!?

foto: Rafaella Pereira de Lima

“Aprendi com os loucos
Que qualquer mínimo
Toco de cigarro tem muita serventia

O que importa é a fome
De nicotina
De ter algo na boca
Que nos dê a ilusão fugaz
De que o tempo passa.

Aprendi com os loucos
A sutura
A fala sem porquê
E a crença de que o mundo
É mais mole
Do que se acha.

(Embora alguns dias
ele esteja bem duro
e difícil de sair 
do cu.)"
(...)[5]



Aprendo com os loucos que a cura não é definitiva, mas instante; que a doença é apenas uma ficção de um corpo que se julga racional. Aprendo com loucos Clarissa, Corpos informáticos, Edson que corpo é língua, não linguagem codificada; que bunda é fuleiragem e arte; que hospício é reduto de artista. Nem por isso belo, heróico, fácil, tranquilo, nem tampouco alegre. Que às vezes é triste, frio, branco e muito solitário. Mas sempre vivo, viva.

"O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. (...) Fim último da literatura [arte], distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (‘para’ significa menos ‘no lugar de’ do que ‘na intenção de’)."[6]


Aprendo com loucos que performance é arte, nem sempre vendável, nem sempre termia, sem sempre tem fala, nem sempre é muda. Aprendo com os loucos que performance é provocação do corpo nu, uma loucura de arte que sempre escapa a uma lógica predeterminada. Aprendo com os loucos que performance é coisa viva que cria ainda mais vida, mais vida!

Aprendo com todos os loucos que a loucura não é minha, sua... é sempre nossa, compartilhada, por mais que alguns tentem negar farmacologicamente. A loucura é escrita no diário secreto alheio, de colagens em nexo singular, entendida ao sabor do gosto do que vive. Aprendo como louco que loucura é cura para mim e doença para outros, mas sempre criação de vida mesmo que a morte seja sempre sedutora.
Aprendo com os loucos que loucura é arte, possibilidade de vida outra, nem sempre compreendida, nem sempre glamorosa, mas sempre anti-monotonia dominical, anti-manicômio racional. Aprendo com os loucos o show que cura o corpo cansado de racionalização desmedida.
 
foto: Rafaella Pereira de Lima

 Referências:

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.


ROTERDÃ, Erasmo. Elogio da Loucura. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.


[1]ALCANTARA, Clarissa de Carvalho. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2011.
[2]MEDEIROS, Beatriz de. Pesquisa em arte, linguagem da arte ou Como escrever sobre o pensamentocomocorpointeiro. In.: AQUINO, Fernando; ______. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.
[3] Trecho do texto “Solidão (o mundo é merda)”, Edson Costa Duarte [vivo]. Disponível em http://duarteazul.no.comunidades.net/index.php?pagina=1206516972 . Direitos gentilmente cedidos a mim.
[4] Conceito vivenciado pelo grupo Corpos Informáticos, como alternativa ao já capturado conceito de arte da performance. Para saber muito mais www.corpos.org
[5]  Outro trecho do texto “Solidão (o mundo é merda)”, Edson Costa Duarte [vivo].







quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Mais uma ideia da[´] ideia de greve

Um dos últimos textos que escrevi aqui, não por acaso, fora a respeito da greve. Naquele momento, e dada análise historicista feita, percebi que havia pouco espaço para que algo novo se desse: que a categoria de servidores, no caso, a de professores fosse ouvida e tivesse suas reivindicações aceitas em sua totalidade.
Atentei para a característica da imagem do governo dos Trabalhadores que fora construída a partir das famosas greves das décadas de 70, que tinha como líderes muitos ocupantes de cargos administrativos federais de hoje.
Acompanhei também através das redes sociais os velhos jargões relacionados ao populismo da greve: muitos, mas muitos postes a respeito de certa manipulação por parte da mídia dita de direita aliada a um governo dito de esquerda, que obscurece aspectos fundamentais das reivindicações dos servidores, através das máscaras novelísticas. E ainda tem o julgamento do mensalão.
O tempo passou e certas previsões fatalistas a respeito da greve dos professores se cumpriram. O governo pouco avançou nas negociações, apresentando propostas que, de fato, pouco modificaria o estado em que as coisas estão. Basicamente,  se mobilizaram  por aumento significativo do salário e reestruturação da carreira, de modo a diminuir a discrepância entre servidores de uma mesma categoria. E outras categorias de servidores federais iniciaram outros movimentos grevistas, buscando, quase que o mesmo. E neste ponto que o caso se desdobra em muitos. E aí, poderia usar uma trama de conceitos, mas que na voz de Renato Russo toma forma de “o mais do mesmo”.
Quase 3 meses de greve nas universidades com prejuízos difíceis de calcular, em comparação ao escândalo instantâneo gerado pelas faixas afixadas por polícias federais paralisados que soam aos ouvidos como “drogas a solta”, “livre pra bandidagem”, “medo a solta”, o movimento grevista docente vislumbra a amarga derrota agarrada a uma imagem tradicional da greve.
A greve, que já é regulamentada por lei, vira discussão governista na busca de dispositivos e decisões judiciais que a impeçam, situação paradoxal, se fizermos novamente uma análise histórica dos movimentos sociais e da ascensão partidária. A greve perdeu seu teor de exceção, surpresa e, principalmente, possibilidade de criação do novo. Os meios de comunicação já nem fazem muitas ressalvas a respeito da paralisação. Vi, pasmem colegas mais céticos, desde o início do movimento o jornalismo da Globo reservando lugar às notícias, certo que não abriram discussão, mas não é diferente em para outros assuntos. E nem soaram tão sensacionalistas como as envolvidas a paralisação dos policiais que causam mais temor.
Uniram-se aos professores outras tantas categorias, entre elas, Servidores do Itamaraty, Do IBGE, da Comissão Nacional de Energia Nuclear, da Agência Nacional de Cinema, da Anvisa, da Anatel, do Inmetro, do INPI, do Incra, da Secretaria de Patrimônio da União, da FUnai, do Inep,  do FNDE, só para falar de algumas. Mas se unem de certa forma na promoção de outra desunião. Todos servidores da União. Mas eis que se dá a diferença na repetição.
Assistimos a uma avassaladora jogada de marketing prol professores, de qualquer nível de ensino. Mas vemos outra realidade diferente da propagandeada. Uma ilusão que temos e que causa obscuridade ao tratar de servidores federais é discrepância entre as categorias e a própria dificuldade de articulação dentro das categorias, como exemplo, a presença de três sindicatos distintos que representam os docentes federais e que acabou por causar um dos maiores constrangimentos e dubiedade, pois um dos sindicatos, o com menor representatividade, acabou por aceitar a proposta governista dando a parecer que chegava ao fim a greve.
Outra dificuldade e diferença que se cria ao considerar a luta salarial e por estruturação de carreira entre os servidores de diferentes categorias  federais é a variação de valores. Só como exemplo, pego a categoria de Policiais Federais, que apesar de pouco tempo em greve, causou mais alvoroço midiático e entre os cidadãos que as outras categorias. Para ingressar na carreira, em nível médio, o salário é de R$3,2 mil; nível superior em qualquer área, R$ 7,5 mil e superior em Direito, para cargo de Delegado, R$13 mil.
Aos professores, o governo ofereceu um aumento que varia entre R$7 mil até R$ 17 mil, em média. Sabido que menos de 20% da categoria seria capaz de alcançar o último nível, visto o tempo necessário e o investimento em formação (doutorado). E o governo anuncia e o povo “pira”.
Se pegarmos ainda servidores do legislativo ou judiciário que ostentam os maiores salários e regalias da república, a discrepância salarial É maior, constrangedora e revoltante.
Apesar de nos apegarmos a uma imagem de consolidação de uma certa democracia, parece que estamos fixados numa imagem do passado-atualíssimo digno de governos autoritários e monárquicos dos tempos feudais.
Parece que os pensadores do Estado Moderno criaram outras implicações que vergonhosamente são envolvidas pela burocracia excessiva de Max as quais a tal isonomia dos poderes de Hobbes não se realiza na luta de classes do marxismo. Contemporaneamente, estamos agarrados a imagens irrealizáveis de idealismo.
Os movimentos grevistas, os abismos entre as categorias dos servidores – que impede pensar a ideia de UMA classe – a realidade partidária com suas alianças surpreendentemente assustadoras só me traz uma certeza: estamos diante de um espelho olhando para um rosto enrugado em busca de juventude.
Acho que já deu pra perceber que não existem heróis da democracia, nem salvadores da pátria nem mesmo progresso que dê conta acabar com opressões cíclicas. E longe de parecer pessimista, percebo que existem aí possibilidades outras ainda não exploradas. Uma delas é dar-se conta que nada está pronto, acabado, resolvido, garantido, para sempre instituído. Seja leis, edifícios ou cargos. Tudo ainda está em vias de ser modificado, transformado, feito, de se adequar, de ser criado. No entanto, é também necessário abandonar certas imagens e lugares cômodos institucionalizados; certas condutas. Quem sabe, talvez, em tempo de crise tão intensa internacional, não seja momento de, além de lutar por aumento salarial, seja tempo de lutar por reduções de salários insustentáveis. E é sempre importante lembrar, que por mais caro que sejam os gastos públicos, são também os mais pobres que pagam a conta.
É tempo de criar!

Informações:
Comando Nacional de Greve das IFES http://cngandes.blogspot.com.br/

domingo, 17 de junho de 2012

Arte sandumonense: criação com muito Choro

Você já pensou como é o trabalho de um produtor cultural no Brasil? Quais as possibilidades de captação de recursos para a realização de um projeto? Entende de leis de incentivo municipais, estaduais ou federal? Parceria pública ou privada? Muito difícil?
Meu amigo descobriu outro: o Choro.
Uma cidade pequena do interior de Minas Gerais – nem tão interior, já que Santos Dumont é mais próxima ao litoral do Rio de Janeiro que da capital mineira, Belo Horizonte, que, sim, fica de fato, no interior do estado; sim, em comparação a cidade de Juiz de Fora, SD está mais ao interior do estado, deste modo, trata-se então, de uma cidade do interior do litoral de Minas Gerais.
Como grande parte das pequenas cidades, SD não possui muitos recursos financeiros ou pensa-se assim. Inclusive para área de cultura. A cidade abriga, ainda, em uma mesma Secretaria as áreas de Educação, Cultura, Esporte e Lazer, consequentemente, existem escassos recursos e/ou leis em vigor específicas de incentivo a produção artística local. Mas nada como um bom choro para resolver adversidades.
Um jovem músico, mas experiente artista, um legítimo sandumonense, cansado e/ou esgotado, paciente de ouvir negativas a respeito da situação de apatia que parecia instalada na cidade – bem diferente dos áureos e esplendorosos memoriais de grandes carnavais e encontros sabáticos nos clubes da elite do passado – Tiago Guimarães resolve cortar as asas da imaginação e decide metamorfosear ideia em ação.
Sem uma política estatal específica, sem coletivo de coletivos instituídos que não fosse seu próprio desejo compartilhado de realizar trabalho, buscando uma valorização de uma tradição da cidade, faz-se Choro – samba com muito choro.
Assume para si e com outros a responsabilidade ética de chorar por/com arte. Vai a comerciantes e poderes públicos um pouco individuais, apresentar sua “propost[ação” – porque o movimento já havia começado. Consegue verba, estipula prazos e marca encontros. Ensaios de desejo e outros ensaios de muitos convites. Falta o público.
Os grandes salões do passado? Os novos espaços não acessíveis interessantes e de interesseiros? Os espaços engajados?
vista panorâmica da feira livre. foto facebook
Que nada. A escolha foi livre, à feira. Livre. À beira da linha férrea, na antiga estação de trem, que aguarda há muitos anos sua reforma para poder ser chamada de Centro Cultural. Estação de encontro de trens, sons, pessoas, de gerações em geração, de desejo, de ideias, de realidades, de ação. Feira de domingo com Choro feito de muito choro, de cheiro de café moído na hora, de música, cacarejo de galinha, de couve molhada e alface verdinha, de som que cala a multidão, de olhares atentos às belas moças que tocam – o que diriam os tradicionais!? – Sim, elas tocam e junto deles, encantam a todos!
E a pergunta se alastra feito oferta da barraca doce de D. Madalena: “de onde são estes músicos tão talentosos?”
Um sorriso maroto, de menino ainda, de alegria não contida no encontro sem choro, mas de muitos aplausos: “somos daqui mesmo, sandumonenses.”
Não por acaso ou por acaso do encontro, a poucos metros está a sede dos primeiros encontros, o antigo Conservatório Artístico e Musical Johann Sebastian Bach, hoje, CEMAM – Centro Municipal Artístico e Musical - local em que quase todos já passaram como estudante ou professor, assim como Tiago que continua professor e, agora, aluno de Licenciatura em Saxofone da Unicor.
Os mais velhos maravilhados, os mais novos curiosos. Da tradição, do desejo de ver resgatado o trabalho de grupos como “Carinhoso”, surge um novo. Encontro de múltiplos produtos da terra na feira de domingo de sons.
Do rigor ético, estético e político que diz Suley Rolnik, em seu texto Pensamento, corpo e devir: Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico acrescento outro, o econômico. Ético por assumir um projeto de valorização daquilo que acredita, encarando desafios, superando-os de forma criativa. Estético por não esmorecer frente a um mercado “tchun tchan”, imediatista, frívolo e opressor. Político por agir nas possibilidades, afirmando as potencialidades singulares de sua ação. E econômico por fazer-se produto consumível por aquilo que é, assumindo o risco de não ser por aquilo que o mercado impõe como consumo.

encontro entre "Carinhoso" e "Feira com Choro"

O jeito Tiago de Chorar com arte junto de todos não deve servir como modelo, mas como exemplo de forma outra de fazer do desejo motor, invenção, frente a tantas impossibilidades. E dizer: sim, é possível criar o novo partindo do velho. Inclusive, é sempre tempo de problematizar leis e fundos de incentivo vigentes, que se utilizam de recursos públicos arraigado em regime de mecenato de promoção privada.

É hora de alegria, de realidade, de superação, de criação, de vida, de música, de Choro. Apoiado numa tradição respeitada por seu criador, o encontro “Feira com Choro” acaba por criar outra tradição, assim, contemporânea, no sentido extemporâneo que não se identifica mais com o silêncio de quinze em quinze dias; que toma conta do domingo de manhã. Bom, que, para bom choro, é sempre bom o tempo para tomar fôlego para com Choro, consumir-se na feira inteira.

Parabéns a todos que fazem desse encontro arte!
Então, até o próximo domingo.
Público no encontro - "Feira com Choro"


“Feira com Choro” é id[r]ealizado por Tiago Guimarães - responsável pela captação de recursos junto aos comerciantes e aos órgãos governamentais locais - teve seu início em fevereiro de 2012.  Acontece aos domingos, às 9h da manhã, de quinze em quinze dias durante a feira livre da cidade de Santos Dumont -  MG. Todos os músicos e musicistas são naturais da cidade. A programação vai até outubro de 2012, recebendo sempre, em cada encontro, um convidado diferente.
o grupo em apresentação "Feira com Choro"


Composição do grupo:
Alysson de Vasconcelos - Violão
Conrado - Pandeiro
Gabriela Amorim - Flauta Transversal
Luiza Andressa - Sax Tenor
Rafael Yung - Cavaquinho
Tiago Guimarães - Sax Soprano




Mais informações e fotos:

sexta-feira, 15 de junho de 2012

A arte é comunicação não-linguística...

"A arte é comunicação não-linguística, voz do corpo e cor do grito. Trata-se de criar um outro do discurso, a ordem do grito. Grito do ser humano. Significações incertas. A indeterminação é desejada: obra aberta. Esse grito não diz nada.

Todo palavra daqueles que se manisfestam contra algo afirma o que negam. O grito da arte não grita nada. Ele é sopro escamoteado, voz catastrófica. Ele rasga a totalidade de nosso ser, de nosso corpo. Ele esvazia. Nega, por sua força, a totalidade dos corpos tensos. Comunicação não-linguística. O grito da arte não grita nada, ainda que ele pronuncie palavras, como no teatro e, por vezes, na performance, ou em trabalhos que se utilizam da palavra mesmo, como Barbara Kruger ou Wilton Azevedo. Esses textos não falam apenas o que as plavras dizem. O conteúdo da arte é sopro e som. Ele arranca a totalidade de nosso ser para fora do nosso corpo, para construir um mundo com a obra. Pura composição com a vida."

Corpos Informáticos - Performance, Corpo, Política, 2011, p. 34

mais muito mais em http://corpos.blogspot.com.br/

domingo, 20 de maio de 2012

opinião: Quando é greve, a situação é grave

Pensar com imagens leva-nos a questões importantes. Greve remete a 1979, uma multidão de trabalhadores, prontos para produzir o que eles nem sabiam que iria se transformar aquilo: história. Pediram 65% de aumento, receberam 63%. Líder grevista: barbudo, analfabeto, Luiz Inácio Lula da Silva. Partido de luta dos direitos dos trabalhadores: PT.
E fez-se movimento. Depois de três tentativas e jogos de manipulação (quando não há manipulação? Este texto tende também a uma manipulação, cuidado!) aquele que o trabalhador, enfim, vê-se representado – imagem – assume a cadeira no Planalto Central: Presidente Lula.
Certo é que, nem era tão barbudo nem tão analfabeto como em 1979, e nem era metalúrgico, como antes. Há um bom tempo que não o era, se prestou a participar de organizações, expansão do Partido dos Trabalhadores, na consolidação da imagem daquele partido político surgido da luta dos trabalhadores contra os patrões.
Quando então assume a Presidência, descobre-se que nem sempre o líder é o responsável pelos sucessos e nem pelos fracassos da ação de seu governo – Itamar só foi chamado de pai do Real por FHC depois de morto e Lula jura que não sabia do mensalão.
Mas a questão grave que quero tocar neste momento é a respeito deste movimento grave de insatisfação nos trabalhadores que acaba por culminar numa greve. Ora, sabido é (e isso é o perigo, o sabido!) que a chegada ao poder do Partido dos Trabalhadores é resultado de certa imagem que se construiu a respeito de sua inclinação à luta pelos direitos dos trabalhadores. E quando o patrão é o PT? Como isso fica? Distorção da imagem.
Sabemos que segundo as leis que regem o bem-estar da nação, é lícito fazer greve. Tão lícito que a Justiça pode considerá-la ilícita. Uia! Complica.
Disse aqui apenas de Lula, mas poderia dizer de outros tantos, como o prefeito de minha cidade, que foi eleito e re-eleito com a imagem “Professor!”, dos Trabalhadores, ex-sindicalista, mas que até hoje (pode ser que amanhã o faço) não foi capaz de propor alguma mudança significativa ao magistério sandumonense, e apesar de movimentos pró-greve em anos consecutivos, ainda não houve a aprovação do Projeto de Lei de valorização da carreira de magistério, que tramita, há pelo menos 4 anos, na Câmara Municipal de Santos Dumont. E como ficam os vereadores? Complicado.
O que aconteceu com os partidos dos trabalhadores? Partiu-se demais? O que aconteceu com a força da grave? Algo mudou, mas a imagem não.
Quando Lula fora líder sindical fora fácil identificar os seus opositores, que com o passar do tempo, atualizou-se na imagem do PSDB – aqui falo dele, apesar da Presidência ser ocupada, atualmente, por uma mulher (o que pode ainda produzir muitos pensamentos singulares e potentes), por ele ainda representar imageticamente uma referência à luta pelos direitos dos trabalhadores e pelos mais vulneráveis socialmente; e não por acaso, agora, sua imagem está presente nos meios de comunicação ao lado de candidatos a cargos eletivos de 2012.
Hoje, vemos uma aliança entre PT e PSDB, por exemplo, na capital mineira. Como bem dizem, o Brasil costuma se identificar muito com os padrões da teledramaturgia. Será que, na onda, “Avenida Brasil”, os políticos resolveram também abandonar o maniqueísmo mocinho versus vilão – trabalhadores versus patrões  ou PT versus PSDB para deixar assim, mais emocionante, já que estávamos muito livres desde a redemocratização?
Houve uma mudança na imagem ou outra imagem vem se construindo ou ainda, outra já fora destruída, mas cismam em querer retomá-la. A greve, o Lula, o PT, os patrões e os trabalhadores de 1979 já não existem mais. O que tornam as coisas mais graves. Não sabemos como proceder, se antes tínhamos um governo PSDB, de burgueses famintos e opressores, hoje, temos uma chamada classe C que ascende com poder de consumo, apoiada num governo dos Trabalhadores, há pelos menos 12 anos, que teme regredir no alfabeto.
Os líderes que ensinaram, que mostraram que a greve é um dispositivo potente, democrático são, neste momento, os que buscam na Justiça uma justíssima justificativa justa para o fim da greve. Os sindicatos, em muitos casos, ainda atrelados a partidos políticos, como fora em 1979, tentam, perigosa e alucinantemente, relacionar desejos partidários com desejo de uma classe, dizendo fazer política em ano eleitoral.
Um aspecto que vem acentuando-se a cada movimento de greve é a mobilização dos trabalhadores, cada vez mais eles participam menos. E por ter uma participação menor que os aproximadamente 3,2 milhões de trabalhadores de 1979, demonstram a greve como dispositivo ineficaz diante de decisões judiciais favoráveis aos patrões que questionam a sua legalidade e diante de uma opinião pública desinformada, única a sofrer diretamente as consequências da má qualidade dos serviços e sua paralisação. A greve de hoje está longe de garantir os 63% dos 65% exigidos, como a de 79.
Como proceder ante a história da greve, a estes históricos de recentes greves, nestas atuais greves, na situação grave? Não sabemos. Não sei. Talvez este deveria ser o enfrentamento dos grevistas e por conseguinte, dos patrões-governos. O não sabido, a nova imagem que surge, os novos trabalhadores e os novos governos. Não podemos nos portar como antes, frente a um governo que sabe, como ninguém, não todos os movimentos, mas que já experimentou muitos movimentos possíveis graves de uma greve. Precisamos surpreender, criar, para que não continuemos a ser surpreendidos por decisões que despotencializam, que nos fazem desacreditar, que nos decepcionam frente a mudança que não traz vida. Talvez a greve já não seja o melhor dispositivo. Talvez o contrário seja mais potente. Trabalho ao extremo. Execsso de produção. Trabalho, trabalho e trabalho. É preciso buscar outras saídas; escapar, perfurar, minar certas imagens, desapegar-se de verdades. Uma greve outra, um trabalho outro? Isso dá muito trabalho. Não sei. Sem certezas, sem modelos, sem herois. O jeito é ir fazendo sem saber, e por isso, a situação torna-se ainda mais grave.

Fonte: http://www.abcdeluta.org.br/materia.asp?id_CON=145

quarta-feira, 16 de maio de 2012

un collage três

"Quando saímos, se está a nevar e tudo se pôs branco, ficamos sós, sentimo-nos sós. Se o sol estiver a brilhar, talvez não. Mas nada garante que aquilo que o outro sente seja equivalente ao que nós próprios sentimos. Quanto à mensagem, não... sei... Não há mensagem. A melhor coisa é deixar a intuição e a imaginação agirem. É verdade que eu quero dizer com força qualquer coisa difícil de formular, qualquer coisa de escondido; mas são os espectadores que têm de o descobrir, senão tudo seria tosco e grosseiro; são vocês que têm de o descobrir, eu não posso proceder demasiado diretamente. Frente a certos valores, é preciso, acima de tudo, sensibilidade.”[1]“Nós desejamos fervorosamente uma unidade com a qual nos identificar, uma harmonia, uma estabilidade. Quando as peças se embaralham muito nos sentimos sem chão, é como se alguém nos tivesse tirado o tapete. A questão é que ansiamos pela ordem e repudiarmos o caos, a desestabilização de nossas certezas, de nossas verdades. Queremos um escudo protetor que nos afaste do desconhecido e, assim, nos faça manter uma mesma personalidade para o resto da vida. Parece que precisamos de unidades que nos tranqüilizem. Mas o problema é que não as pensamos como provisórias.”[2] "A professora e a aluna estão na porta da sala de aula. A aluna com um livro na mão e a professora à procura de algo. A menina, onze anos aproximadamente, quarta série do Ensino Fundamental. A professora, a mulher, tendo na Educação Física sua área de atuação. A menina, com o livro na mão, mostra: “Tia, olha aqui”, e aponta o livro. Os olhos da professora procuram algo, mas ela não olha o livro da aluna e afasta-se. Antes que a distância fosse maior, a aluna ainda diz: “Tia, aqui...”. E a professora não olha e continua sua caminhada para a secretaria. E então, a aluna murmura: “Desgraçada!”.[3] “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. [...] Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...”[4]


[1] Pina Bausch.
[2] Subjetividades contemporâneas – Leila Domingues Machado, p.4.

[3] Experiências no labirinto: linguagens, conhecimentos e subjetividades/ Sônia Maria Clareto, Margareth Sacramento Rotondo.

[4] Escutatória – Rubem Alves.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

un collage


“DONA MARGARIDA: bom dia para todos. Eu sou a nova professora de vocês. Como vocês já devem saber eu sou dona Margarida. Vou escrever no quadro que é pra vocês se lembrarem. (Escreve: dona Margarida) Agora, antes de mais nada, eu gostaria de me familiarizar um pouco com vocês. Antes de eu dizer umas palavras sobre a importância do magistério. Tem alguém aí chamado Messias? Não? E Jesus? Tem alguém aí chamado Jesus? Não? E Espírito Santo? Não? Não mesmo? Ainda bem. Aliás, o diretor já tinha me dito que vocês eram uma classe ótima. Não há boa professora sem uma boa classe. Eu estou achando é que esse quadro-verde está um pouco longe. Está dando para vocês enxergarem? Vocês lá de trás? É muito importante que todo mundo veja o quadro-negro. Dona Margarida vai escrever uma palavrinha nele para ver se vocês estão vendo. (Escreve CU) Viram? Cu! O quadro-verde é mesmo muito importante para aprender leitura. E história. E matemática. E geografia. (Volta-se para o quadro e desenha ineptamente um pênis) Estão vendo? Isso é um cabo. Digamos o cabo da boa esperança. É geografia isso. Mas como eu dizendo, é preciso dar relevo e mostrar para vocês a importância da função da professora, da minha função. Porque, afinal de contas, nenhum de vocês está aqui por livre vontade. Todos foram obrigados pelos pais a vir prá cá. Todos sem exceção, não é? Todos estão aqui obrigados: quer queriam quer não queiram. Deve haver uma boa razão para isso. A razão é muito simples. Dona Margarida explica logo a vocês. Vocês já notaram que comigo é assim: dona Margarida vai lodo explicando as coisas pra vocês. Mas a razão que eu ia dizendo... ah, por que vocês estão todos aqui sentados em suas carteiras sem terem podido escolher... a razão é muito simples. É que a escola é um segundo lar.(...) Vocês têm que se conformar que aqui dentro dessas paredes vocês não mandam nada.” ROBERTO ATHAYDE “47. Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual – mas sem podermos decidir, com segurança, o que aí é causa ou é efeito. Justificativa a última dúvida o fato de, entre os sintomas mais regulares, tanto nos povos selvagens como nos domesticados, achar-se também a volúpia mais repentina e extravagante, que de modo igualmente súbito se transforma em convulsão de penitência e negação do mundo e da vontade: ambas interpretáveis como epilepsia mascarada, talvez? Aqui, mais do que em outra parte, deve-se renunciar à interpretação: em torno de nenhum outro tipo se desenvolveu até agora tanta insensatez e superstição, nenhum outro parece haver interessado mais os homens, inclusive os filósofos – seria tempo de precisamente aqui tornar-se um pouco frio, aprender a cautela, melhor ainda: afastar a vista, afastar-se. – Mesmo no fundo da filosofia mais recente, a de Shopenhauer, encontra-se, quase como o problema em si, essa horrível interrogação da crise e do despertar religioso. Como é possível a negação da vontade? Como é possível o santo?(...)” FRIEDRICH NIETZSCHE “O artista é um homem que não pode se conformar com a renúncia à satisfação das suas pulsões que a realidade exige. O artista dá livre vazão a seus desejos eróticos e fantasias. A realidade interdita o tempo todo. Desde coação social até a gramática. A obra de arte se caracteriza pela transgressão, por não obedecer a gramática.” SIGMUND FREUD[1]  “A performance é uma pintura sem tela, uma escultura sem matéria, um livro sem escrita, um teatro sem enredo... ou a união de tudo isso...” SHEILA LEIRNER[2] “A utilização da collage na performance resgata, dessa forma, no ato de criação, através do processo de livre-associação, a sua intenção mais primitiva, mais fluída, advinda dos conflitos inconscientes e não da instância consciente crivada de barreiras do superego.” Renato COHEN “226. Nós, imoralistas! – Esse mundo que nos concerne a nós, no qual nós temos que temer e amar, esse mundo quase invisível e inaudível, de comandos e obediências sutis, um mundo de ‘quase’ em todo sentido, espinhoso, insidioso, cortante, delicado: sim, ele esta bem protegido de espectadores grosseiros e curiosidade confiante! Estamos envoltos numa severa malha de deveres, e dela não podemos sair – nisso precisamente somos, também nós, ‘homens do dever’! Ocasionalmente, é verdade, dançamos com nossas ‘cadeias’ e entre nossas ‘espadas’; com mais frequência, não é menos verdade, gememos debaixo delas e somos impacientes com toda a secreta dureza do nosso destino. Mas não importa o que façamos, os imbecis e as aparências falam contra nós, dizendo: ‘Estes são homens sem dever’ – sempre temos os imbecis e as aparências contra nós!” FRIEDRICH NIETZSCHE “...o teatro refunde todas as ligações entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que já existe na natureza materializada. ...O teatro devolve-nos os nossos conflitos dormentes e todas as suas potências e dá a essas potências nomes que aclamaremos como símbolos...” ANTONIN ARTAUD[3] “137. “No trato com eruditos e artistas, é fácil equivocar-se em direções opostas: por trás de um erudito notável encontramos não raro um homem medíocre, e por trás de um artista medíocre – um homem muito notável.” FRIEDRICH NIETZSCHE “A arte se torna inimiga do artista, pois nega-lhe a realização que ele deseja – a transcendência.” “O silêncio no sentido de término, de uma zona de meditação preparatória para um amadurecimento espiritual, uma provocação que acaba na conquista do direito de falar.” SUSAN SONTAG[4].


REFERÊNCIAS:

ATHAYDE, Roberto. As peças precoces: Apareceu a Margarida e outras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.

NIETZSCHE, FRIEDRICH. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.


[1] FREUD apud COHEN, Performance como linguagem, 2009.
[2] LEIRNER apud COHEN, idem.
[3] ARTAUD apud COHEN, idem.
[4] SONTAG apud COHEN, idem.