Nunca fumei maconha.
Não tinha problemas para dormir. Duas vezes aprovado nas primeiras colocações em universidades públicas, cursando toda educação básica também em escola pública.
Porre, só tomei depois dos 20.
Sempre fui muito romântico, transei pela primeira vez aos 22.
Como muitos amigos que foram pais e mães adolescentes, fui muito religioso e temente a Deus e de suas paixões.
Nunca tive uma família muito “ajustada”: adultérios, uso indiscriminado de drogas, assassinatos por motivos banais, incestos, mortes, suicídios, prisões, depressão, internação em hospitais psiquiátricos, preconceito.
Prefiro ser ativo. Fetiches, apenas os mais óbvios, ou nenhum.
Essa minha caretice, apesar de tudo, devo a essa vida capitalista ou anti-capital.
Nunca tive dinheiro para um beck. Sempre tive medo de não poder sustentar meus vícios. Porque esses eu tenho.
Devaneios nunca me faltaram. Noites inquietas, em claro, nunca me faltaram. Meu organismo, muito careta, nunca aceitou bem drogas para dormir. Pareciam, na verdade, fazer o efeito contrário.
Então, passava horas entre coração acelerado, respiração encurtada, dores na nuca, suor, vultos negros disformes, escuridão visual, tonteira, atenção dilatada. Quase um treinamento artístico sem obra. Vai ver foi. Pois cria-se muito em situações de pânico.
Da maioria dos porres que tomei me sobraram apenas poucos flashs, histórias de outros e muitas lembranças de ressaca. Camas desarrumadas habitadas por desconhecidos. Criação. Acho que foi instantânea, fica só para aquele momento.
Já as noites mal dormidas, as ansiedades de aparência de ser, as palpitações desarticuladas, essas estão sempre na memória, capazes de serem re-produzidas a cada momento.
Para cheirar uma carreira, injetar na veia, fumar uma pontinha, tomar um docinho, fazer a função, são tantos atravessadores, são tantas pessoas volvidas, são tantas vidas tomadas, de assalto, traficantes, tra-ficadas (ficantes pelo caminho, sem caminho, por tantos caminhos...) que quando se esta no conforto de seu loft, do seu apart, do seu quartinho minúsculo, mofado, do seu particular espaço, na festa do fim de semana, na casa do amigo desconhecido, no fim de um dia estressante – porque afinal de contas, merecemos descanso depois de tanto trabalho, de tantos atravessamentos. Ligamos a TV, acessamos mais uma vez a fan Page favorita, logamos no face, de cara, assistimos, passivos, anestesiados a mais uma notícia de roubo, de apreensão de entorpecentes, invasão de favela, morte de policiais, corrupção nas esferas governamentais, de morte na esquina, de execução sumária pela polícia.
Não se sentir responsável, porque a responsabilidade já está tão diluída, tão compartilhada e curtida por tantos, mortos, que dichavam aquilo em notícias cotidianas, que a anestesia é plena. Puro nirvana.
Percebo como sou careta.
Talvez se tivesse pouco mais de dinheiro achasse tudo isso mais convincente, conveniente. Consumiria estes devaneios alheios.
Maldita vida capitalista que não dá direito a uma fantasia gratuita. Ou na liquidação, dá-nos apenas uma: felicidade descartável da ponta de estoque da última estação.
Pior, por vezes, vendo tantos anestesiados, tantos entorpecidos, sinto-me ainda mais responsável. Não como um cristão, que busca a ressurreição sacrificando um por todos; mas como muitos que sacrificam-se por poucos. São números, estatísticas, levantamentos, pesquisas, dados, muito dados. Outros vendidos.
Sou careta. Faço por vezes careta.
Uma folha de coca colombiana não custa nem um terço do valor final de sua transformação em pó.
Maldito capitalismo que não dá direito a uma fantasia comum.
Uma vida da favela, da esquina de Diadema, no presídio super lotado, do morro, da comunidade, vale menos que uma do prédio de alta classe, média burguesia consumista medrosa, em seus portões fajutos e seus blindados de hipocrisia que acreditam que democracia é obrigação de votar nulo de dois em dois anos.
Maldito capitalismo que não da direito ao pensamento. Maldito capitalismo que transformou pensar em caretice.
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