quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A loucura dá show. a louCURA da arte.

A falta de compromisso com uma lógica vigente e a fundação de uma lógica outra há muito seduz pensadores artistas de diferentes áreas que, na loucura, potencializam a vida. 

foto: Rafaella Pereira de Lima

Uma performance re-vivida. Mostra de Curtas Performances do Mezcla – Juiz de Fora, evento que já faz parte do circuito paralelo do Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. Três edições seguidas.  Cartografia do Show da louCURA 3.
foto: Claudia Meireles
Uma lógica outra. Uma descompromissada relação com a lógica compro-metida. Eis a sedução da loucura que é alternativa de cura para a vida adoecida do pensar com a cabeça.
No advento do triunfo do que conhecemos como pensamento racional, um homem bem relacionado, num discurso eloqüente, destoa, por vezes jocoso e outras, libertador. Erasmo de Roterdã usa uma das formas mais lógicas – a linguagem – para tornar inteligível certo pensamento zombeteiro ao amigo Thomas More, conseguindo dar voz que ecoa desde 1508: O Elogio da Loucura. “Ireis, pois, ouvir o elogio, não de um Hércules ou de um Sólon, mas de mim mesma, isto é, da Loucura.” (ROTERDÃ, p.16)
A loucura tomou corpo dado por deuses do Olimpo. Agora, em tempos de realities shows, com tamanha exposição de artistas massificados, toma para si o foco e performa seu próprio show de louCURA!
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Que pode a loucura?
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Criar! Infinita possibilidade de invenção. Ilimitada criação! Questiona o saber instituído da morte dos sentidos. Deseja vida, busca saúde, a cura para o corpo cansado de ser guiado, negado, domesticado. Em performance dispara contra, perfura conceitos, cria. Possibilidade de vida!
“Eu vim de longe pra encontrar o meu caminho. Tinha um sorriso e um sorriso ainda valia, achei difícil a viagem até aqui. Mas eu cheguei, mas eu cheguei.” (música A viagem – livro de canto do Encontro de Adolescentes com Cristo)
A loucura vem de longe, de paragens desconhecidas, faz livre associação de afetos na criação: música, mala de couro cheia, texto “Solidão (o mundo é merda)” de Edson Costa Duarte [vivo], loucamente criativo, cadeira iluminada por um foco de luz arredondado, diferentes óculos coloridos, leque de penas rosas, vestido básico preto, jaleco branco. Muitas pessoas observam, estão presentes. Hospício da criação.

“(...) um dos traços característicos da linguagem da performance é o uso do collage como estrutura.” (COHEN, p. 60)
É uma colagem a loucura. Gruda na pele. Gruda pele. Cola palavra no corpo. Cria corpo de palavra grudada: corpoalíngua[1] e pensamentocomocorpointeiro[2]. Música chiclete que cisma ficar na cabeça. Cola no corpo a roupa de conceitos que vira armadura que impede o movimento. Loucura é nu!
“Eu vim por causa daquilo que não se vê. Vim nu, descalço, sem dinheiro e o pior. Achei difícil a viagem até aqui, mas eu cheguei, mas eu cheguei, mas eu chegay, mas eu chegay.”
Corpo nu. Volúpia não sexista. Nu. No palco. Nu loucura. Que cura e pensa corpo artista outro. Nu palco. A loucura é o desnudamento da razão. Todo louco veste o nu de seus desejos cotidianamente. Nu mente. Na mente. Nu.
“Tento, em vão, procurar algumas palavras que, de alguma forma, esbocem algum sentido às perguntas que nos inquietam a mente... Mas, como apaziguar a inquietude da alma com palavras? Serão elas suficientes para acalentar a alma de quem convive diariamente com a tênue linha que separa (e ao mesmo tempo aproxima) a loucura da razão?” [3]  
foto Claudia Meireles
foto Claudia Meireles
Inquietação. Show da louCURA 1, 2, 3 e já marcado o 4. Paixão. Volúpia. Criação. O corpo assalta a cena, toma a razão sabia-mente.
 
“Segundo a definição dos estóicos, sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. (...) Além disso, [Júpiter] relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando o resto do corpo presa das desordens e da confusão.” (ROTERDÃ, p. 28)
Performance. Confusão. Com-fusão com teatro. Eis a vida! Outra alternativa é vivida e questiona a loucura da razão. Um corpo que cria todo inteiro. Parafraseando Nietzsche, a razão é apenas uma parte de uma razão maior que é o corpo. Que corpo? Que teatro? Que performance? Desde o primeiro show, uma confusão de conceitos, um pré-conceito a respeito de performance. Mas nas curtas performances achei um pouco teatro. Chega o momento de limitar, no efêmero, nu efêmero,  limitar um pouco o ilimitado da arte da performance, que pode ser fuleiragem[4].
Diferença entre teatro e performance:
O ator de cueca branca afirma:
- Eu estou nu!
O performer, sem roupa, observa:
- Eu estou vestido.

A pele. Vestido do corpo. Corpo vestido de pele. Um corpo. A pele é o maior órgão do corpo. Sensacional! De muitas sensações. Reveste e investe um mundo, o dentro-fora. É o mais profundo, afirma o filósofo. O toque de dentro com o fora. O fora do dentro. Constante atualização de sentido. Coisa de pele, sabe!?

foto: Rafaella Pereira de Lima

“Aprendi com os loucos
Que qualquer mínimo
Toco de cigarro tem muita serventia

O que importa é a fome
De nicotina
De ter algo na boca
Que nos dê a ilusão fugaz
De que o tempo passa.

Aprendi com os loucos
A sutura
A fala sem porquê
E a crença de que o mundo
É mais mole
Do que se acha.

(Embora alguns dias
ele esteja bem duro
e difícil de sair 
do cu.)"
(...)[5]



Aprendo com os loucos que a cura não é definitiva, mas instante; que a doença é apenas uma ficção de um corpo que se julga racional. Aprendo com loucos Clarissa, Corpos informáticos, Edson que corpo é língua, não linguagem codificada; que bunda é fuleiragem e arte; que hospício é reduto de artista. Nem por isso belo, heróico, fácil, tranquilo, nem tampouco alegre. Que às vezes é triste, frio, branco e muito solitário. Mas sempre vivo, viva.

"O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. (...) Fim último da literatura [arte], distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (‘para’ significa menos ‘no lugar de’ do que ‘na intenção de’)."[6]


Aprendo com loucos que performance é arte, nem sempre vendável, nem sempre termia, sem sempre tem fala, nem sempre é muda. Aprendo com os loucos que performance é provocação do corpo nu, uma loucura de arte que sempre escapa a uma lógica predeterminada. Aprendo com os loucos que performance é coisa viva que cria ainda mais vida, mais vida!

Aprendo com todos os loucos que a loucura não é minha, sua... é sempre nossa, compartilhada, por mais que alguns tentem negar farmacologicamente. A loucura é escrita no diário secreto alheio, de colagens em nexo singular, entendida ao sabor do gosto do que vive. Aprendo como louco que loucura é cura para mim e doença para outros, mas sempre criação de vida mesmo que a morte seja sempre sedutora.
Aprendo com os loucos que loucura é arte, possibilidade de vida outra, nem sempre compreendida, nem sempre glamorosa, mas sempre anti-monotonia dominical, anti-manicômio racional. Aprendo com os loucos o show que cura o corpo cansado de racionalização desmedida.
 
foto: Rafaella Pereira de Lima

 Referências:

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.


ROTERDÃ, Erasmo. Elogio da Loucura. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.


[1]ALCANTARA, Clarissa de Carvalho. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2011.
[2]MEDEIROS, Beatriz de. Pesquisa em arte, linguagem da arte ou Como escrever sobre o pensamentocomocorpointeiro. In.: AQUINO, Fernando; ______. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.
[3] Trecho do texto “Solidão (o mundo é merda)”, Edson Costa Duarte [vivo]. Disponível em http://duarteazul.no.comunidades.net/index.php?pagina=1206516972 . Direitos gentilmente cedidos a mim.
[4] Conceito vivenciado pelo grupo Corpos Informáticos, como alternativa ao já capturado conceito de arte da performance. Para saber muito mais www.corpos.org
[5]  Outro trecho do texto “Solidão (o mundo é merda)”, Edson Costa Duarte [vivo].







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