quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Como um cobrador se tornar motorista entre uma oficina de teatro

ou que se produz com (entre) uma oficina de teatro

Em 2010, realizamos uma oficina de teatro junto à E. E. Cornélia Ferreira Ladeira, à época como parte da programação do sucesso do Projeto de Educação Afetivo-Sexual, PEAS, nesta escola. Os encontros se deram no salão paroquial da Igreja de São José Operário, que por coincidência, estava também em construção e fica localizado no ponto final do ônibus urbano que atende o Bairro da Glória, no alto de uma colina que vislumbra uma bela vista.

Demorei um tempo para escrever este texto, pois o acontecimento que é sua motivação atravessou o tempo cronológico do acontecimento da oficina, que se encerrou em outubro de 2010.
Numa das viagens de ônibus ao local, um assunto começou mobilizar o cobrador do ônibus e um outro passageiro. Não lembro exatamente como se deu o assunto específico. Ou o modo com o qual iniciei ou me intrometi na conversa. Apenas me lembro do meio da conversa no meio da viagem. Lembro-me de estar muito quente no dia, talvez fosse final de agosto ou início de setembro. Lembro os óculos escuros, o incômodo com o calor, a bermuda e a blusa leve. Ou talvez esteja inventando agora sem compromisso em oficinar a verdade do dia.

O assunto a mobilizar os três interlocutores era política. Já não sei, porém, se era tratada a política local e uma insatisfação com o prefeito e uma possível dobradinha oportunista entre o irmão Deputado Federal e seu desconhecido irmão e o futuro prefeito municipal. Ou talvez o mensalão e seus réus que possivelmente não cumpririam as suas penas, recorreriam à sentença. Mas àquela época ainda não se pensava em embargos infringentes. Ainda bem, senão a conversa ficaria mais cansativa e apática. Lembro que o tom de desânimo misturado a uma indignação era a tônica do diálogo. Ou se era tudo isso misturado, política nacional com desdobras regional de mesmice e estagnação mundial.

Em certo momento da viagem, acho que quando só estamos eu e cobrador, e já cansado da reclamação, num tom leve e um tanto debochado, largado como deixava aquele calor que afetava meu corpo, provoquei: Você lembra em quem você votou na última eleição? Eu só fico pensando no que estamos fazendo além de reclamar, porque votar é importante, mas cobrar de quem foi eleito também é, talvez até mais importante.
Senti-me satisfeito. Ácido. Pontual. Violento. Despojado. Provocador. Vitorioso. Não me importei se ele iria ler aquela fala apenas como uma critica pessoal. É que chega um tempo em que o conformismo ressentido, essa mesquinharia medíocre, esse desejo de que a vida se torne fácil com a ação deste ou daquele Sujeito (assim com letra maiúscula), apesar da vida insistir coditianamente na sua dureza, me irrita muito! Esse fatalismo que cria inércia e um futuro choroso e desastroso que so-mente a Deus pertence, só serve àqueles que fazem chorar. Aos chorões, lenços às lágrimas e sal para acelerar a desidratação e quem sabe alguma ação.

Eu já tinha dado a conversa por encerrada, porque do jeito que estava a única saída mais lógica era um suicídio coletivo e já que estávamos dentro de um coletivo, achei melhor ficar na minha.
A conversa se tornou outra coisa. Sei que houve um intervalo, que não sei precisar o que tenha acontecido, um intervalo de anos que se dobra no momento deste texto, e alguém entrou no ônibus e a roleta girou, ou um telefone tocou, ou o sacolejo do ônibus propôs uma trégua, ou o calor dilatou tanto que relaxou os músculos e levou novamente a reclamação ao clima e não ao clímax.

Já perto do ponto final, onde era minha parada, ao me preparar para passar pela roleta, o cobrador ou trocador (depende da região deste meu país) me dirigiu a palavra, com o balanço da cabeça e dos ombros em tom de consentimento como se estivesse encontrado alguma coisa que há muito procurava. E disparou: – Cara, você me fez pensar uma coisa, e é mesmo. O que tenho ajudado a fazer? (Poderia ter sido a famosa frase de um texto conhecido, que gosto muito do Luiz Orlandi – O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?) Mas a leitura do texto não chegou nem perto da alegria da vitalidade da questão inventando uma outra possibilidade de vida no ônibus.

O que mais me surpreendeu foi o que veio a diante: – Eu vou fazer o curso para motorista e você vai ver, quando eu passar, vou buzinar para você! E dizer, lembra de mim?
Caro leitor, passado quase três anos, o que você acha que aconteceu? Eu não poderia me esquecer.

O texto poderia ser encerrado assim, com a alegria do encontro e talvez com certo ar de dever cumprido ou recompensado por me sentir responsável por uma mudança tão significativa ou afirmando um certo poder de Sujeito de se transformar através de outro Sujeito. Porém, o poder do encontro de destruir qualquer Sujeito. Na diferença disso, produzi este texto tentando pensar em tudo o que não disse para aquele cobrador, que nem sei o nome, decidir tomar aquela decisão. Ou isso serviria como estímulo para dizer: quando se quer alguma coisa, faça, ta vendo este cobrador-motorista... Porém, o que me põe a pensar é que em momento nenhum o desejo era transformar cobrador em motorista, era fazer oficina de teatro, entrar, para isso, no ônibus e não deixar de falar aquilo que desejava, muitas vezes parecendo chato e otimista demasiado. Continuo a pensar: quando achei que provocava, era também provocado. Penso em tudo que não disse para que o caminho fosse aquele. Muita coisa acontece entre uma oficina de teatro. Ao cobrador que se tornou motorista, minha admiração plena na afirmação de uma vida sempre possível.

Por hora, sigo com minhas práticas, na ignorância de seus efeitos, refém das causas em mim, e sem controle nenhum em causar em outros. Mas compreendo que muitas coisas são provocadas entre caminhos e vivo pensando que não é importante a partida ou a chegada, mas de fato como se faz o caminho.
E o cobrador em devir motorista da vida continua a me fazer pensar e pensar e e e...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

obrigação de ser professor! (ecos de um grupo em Formação)

O maior desafio da escola não é captar os desarranjos que não são meras subversões ou vontade de transgredir. Toda regra terá sua exceção, já diz o velho jargão. O maior desafio da escola é lidar com desejos, desejo de fazer outras coisas, desejo de fazer nada quando se está fazendo alguma coisa. E desejo não tem a ver com obrigações, inclusive, nem com aprender!

A obrigação é coisa que provoca mortes na escola, até mesmo o mais singelo e despretensioso desenho livre... Tem dias que se quer fazer outras coisas além de desenhar na aula de desenho. Ops!!! E isso seria possível?

Difícil a tarefa de lidar com a obrigação de aprender se nem sabemos como aprendemos e não temos nem a forma, nem a fôrma.

É difícil para todo professor aceitar que, sim, nem todos alunos vão achar as coisas que se diz interessante, mesmo sendo as mais coloridas, as mais diferentes, as mais alegres, as mais mais. Não adianta truques e malabares. O negócio não é entre sujeitos e objetos ou o problema não está entre o Professor e o Aluno, nem tampouco na Aula, mas na relação que não começa na escola nem termina nela, vaza e, dela, pouco se sabe, só se pode apostar, como num lance de dados.

Acho engraçado alguém se espantar com um aluno que não gosta das aulas de arte ou aceitar facilmente que outro não goste das aulas de matemática. A maior dificuldade que enfrenta um professor é a obrigação: de ensinar, de aprender e de saber tudo o que faz; de falar, de opinar, de reprovar ou aprovar. Quem disse que o professor é qualificado para aprovar ou desaprovar alguém? E se o aluno souber mais que o professor, com certeza se entediará e não fará nada ou o contrário, se o aluno não souber nada mesmo, e cansado do discurso que não se sabe nada, se entendiará de não saber nada e continuará sem saber nada. Por isso, não é uma questão simples de avaliação de causa e efeito, porque o efeito pode ter muitas causas ou ter causas sem efeito nenhum.

Nós, professores, por mais descolados que sejamos, nos sentimos obrigados a fazer alguma coisa, a dizer alguma coisa, quando também é importante não fazer alguma coisa, não dizer muitas coisas, mas ouvir e nada fazer.

E isso não quer dizer ouvir o aluno, porque o aluno também aprendeu a ficar calado. Daí, um dos maiores desafios que se tem em sala de aula é ouvir o silêncio que se produz nos entre's as falações, regras e convenções educacionais. E não fazer nada daquilo que se esperava pedagogicamente correto ou sistematizado pelo sistema de ensino que está mais preocupado em transferir informações para resolver problemas previamente estudados pelo mercado de trabalho é tarefa complicada.

Sigo apostando nesta difícil tarefa. Por hora, escrevendo um pouco.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Para falar à verdade e acabar com as mentiras


            Venho pensado que de fato existe sim verdade e que nenhuma Verdade não é inquestionável. Apesar de não estar aqui defendendo uma possibilidade racional de entender tudo, com uma metodologia explicável, reproduzível ou uma cientificidade positivista, também não estou aqui defendendo a existência de uma relatividade, de perspectivas diferentes que possam conviver, mesmo que não se relacionando, num mesmo mundo. É que uma verdade pode matar outra. Para que uma verdade nasça, outra não pode viver. É que uma verdade nasce para matar outra. É um tudo pode, mas não qualquer coisa. Não é coisa apenas do olhar, de mudança de perspectiva, é coisa de corpo inteiro.
Existe um discursinho que há muito povoa o território no qual tenho habitado, a Academia, que defende uma certa tolerância ao diferente, à ignorância alheia, quase um “pai, perdoai, eles não sabem o que fazem”. Entretanto, tem verdades que nascem no-entre, não por estarem no entre uma coisa ou outra – verdade e mentira; consciente e inconsciente; racionalidade e irracionalidade; emoção e razão; teoria e prática – mas porque não são uma coisa nem outra, por não dar sentido à distinção entre uma coisa e outra e ao mesmo tempo incorporarem uma coisa e outra, tornando-se uma coisa só capaz de se desdobrar em outras coisas inimagináveis, coisas outras. Uma verdade dobrável em outra verdade desdobrável em outra verdade desdobrável em outra verdade...
Não existe a Verdade inquestionável, ou melhor, não existe a Verdade que não seja descartável, que não possa ser jogada fora, não porque seja mentira, mas porque já não tem mais uso, não tem sentindo. É como um instrumento construído para dar conta daquele problema, mas que depois de resolvido, criou ou deu lugar para outros problemas. E isso não quer dizer que o problema tenha evoluído, mas, se resolvido, ele dá espaço para perceber outras coisas, produzir outros problemas, resolver outros problemas. Aquele instrumento criado para resolver aquele problema anterior não funciona mais para aquele problema atual. Não é capaz de criar outros sentidos. E aí há a necessidade de criar outros instrumentos, outras verdades.
            Algumas pessoas que se posicionam contra algumas Verdades historicamente constituídas, por vezes, assumem a classificação de pós-modernas. No entanto, o mais grave são aquelas que são classificadas como pós-modernas, não por se identificarem com aquilo que seria a superação da modernidade, mas por uma incapacidade de classificá-las como alguma coisa anterior à moderna forma de pensar. Porém, suas vidas foram justamente desafiam a existência da tal Modernidade, questionando a Verdade Moderna sobre a produção humana.
            Esses seres tão autênticos produzem algumas verdades, assim com letra minúscula, para resolver problemas práticos, de suas atualidades. E sabem, convivem com o fato de que aquelas verdades são locais e possuem suas relações e que em outros modos e conjunções, elas não existiriam. E isso não quer dizer que elas sejam mentiras. Elas são verdades criadas para dar conta de problemas reais e regionais, há a impossibilidade, contudo, de generalizá-las, totalizar, como foi o desejo dos titulados modernos.
            De outro modo, a Modernidade e seu filho chatinho Estruturalismo criaram a Verdade da Evolução, da Sucessão de eventos, a Ideia de Aperfeiçoamento, de Superação, de uma Estrutura fundante, capaz de causar Efeitos futuros controláveis. Alguns perceberam que isso não funcionava bem assim, pois assim funcionou mal. Abriu precedente para tomadas de decisões arbitrárias baseadas em estudos previsíveis e ações que aniquilaram vidas pelo mundo como as muitas guerras regionais, mundiais, perseguição a povos e culturas, tendo como o maior símbolo a doença nazista alemã.
            Diante desta realidade alguns pensadores provocam a pensar de outro modo, abandonando a Modernidade e o Estruturalismo como Verdade e por isso, a própria Ideia de pós-modernidade e pós-estruturalismo. Pois, crer em movimentos “pós” é ainda se filiar a algo anterior, afirmando uma Superação. Pessoas como Foucault, Deleuze, Guattari e Nietzsche denunciaram a crença nesta Ideia de Verdade sempre em depuração, em movimento de Evolução, em direção a um Aperfeiçoamento. O que não quer dizer que eles disseram a mesma coisa ou deram respostas parecidas para questões em comum. Pelo contrário, cada a um, a seu estilo, ao seu modo, produziu as suas próprias questões, seus próprios problemas para então produzir suas próprias respostas, porém destruindo a mesma Verdade. Cada um produziu a sua verdade. E é aí que o negócio pode ficar mais tenso, delicado e por isso, mais interessante.
            Nenhum desses apresentaram suas propostas dizendo “olha, mas pode ser assim também”. Todos afirmaram suas verdades. “É assim também.” Cada verdade cria um mundo e cada mundo criado na diferença está implicado com a possibilidade do outro existir. Se o desejo pela Verdade inventado pelos conhecidos modernos impossibilitava a invenção de outras verdades que não estivessem no mundo da Verdade, as verdades inventadas por estes pensantes artistas são grávidas de outras verdades ainda não inventadas. Nesse sentido, a distinção entre verdade e mentira não faz sentido. Só existem verdades que engendram outras verdades.
            As verdades, como todo mundo sabe, não são coisas fáceis de serem produzidas. Não são assépticas. Não são tolerantes. Não são apolíticas. Não são ingênuas. Não são inócuas. Não são simples. Não são equilibradas. E não são seguras. E por isso é sempre risco. Alguns estão acostumados a pensar Verdade como aquela que resolve e acalma, que cessa a busca. Na verdade, pode se apostar na verdade como o desencadeador de outras buscas, mesmo que cesse uma busca anterior. Apostar na verdade sem se opor à mentira, destruindo a distinção entre verdade e mentira (todos produtores de verdade ou todos produtores de mentira) é apostar numa invenção constante, viva, a qual precisa ser exercitada por aquele que põe pra funcionar. Por isso não nos adianta muito que estes viveram e inventaram outros mundos. Precisamos também assumir a posição de inventores de verdades, mesmo que estas sejam engendradas por outros que não nós.
            E se você terapeuta apostar que todos somos esquizos? E se você artista apostar que tudo o que produzimos é arte? E se você crente não mais acreditar numa metafísica endeusadora? E se você pesquisador apostar que tudo que produzimos é mentira ou que tudo que se produz é verdade?
Provoco a pensar estas verdades como produtoras, ao invés de questionamentos de mentira, produção de outras verdades grávidas de mais vida. Quem arrisca? 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

pobreza não é virtude. riqueza não é defeito. opressão não tem classe social.

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A morte é de um silêncio ruidoso... ruindo  faz ouvir a voz que grita: vida!

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Eu não sou gay todo dia. Tem dias que sou cool; outros sou bad, boring, funny, good, smart, intense... Changing, sempre!

arte e +louCURA

arte é modo. não é objeto. e tenhuzdito.

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Arte é coisa necessária.
Não para o público, principalmente para o artista. Mas isso nada tem a ver com exibicionismo e sim com o risco de despertar controvérsias inimagináveis na produção outra.

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Artista é aquele que, contudo e com tudo, sabe dar vazão e razão à sua loucura.

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Não acredito na arte como terapia. Acredito na arte como expressão. É que a cura de muitos está na possibilidade de dizer!


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Não existe alunos deficientes. Existem escolas deficientes.

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Artista que não diz o que tem que dizer com sua arte, não tem o que dizer. E tenho dito.

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O louco não sabe que é louco. Apenas vive: loucamente!
Você se sustenta na parede da instituição.
Aqueles sustentam a parede da instituição.
Outros bombardeiam a parede da instituição para dar lugar a outros monumentos bombardeáveis.

A invasão do Brasil -+1500

Quando os critulitis chegaram ao nimubos, os faituktins ficaram Innynatisqui. êêêêê BRasil!
Que me intriga não são apenas as crianças na rua,
é que aceitemos que há lugar para crianças na rua;
que me intriga não são apenas os mendigos nas ruas,
mas os mendigos queimados nas ruas;
que me intriga não é apenas o pedinte da esquina,
mas esquecer que tem gente pedindo na esquina;
que me intriga não é a diferença,
mas a naturalização da indiferença.

tentativa II

Esse negócio que professor ensina, não rola. o aluno que aprende.
O professor provoca. 
provocador
provoca dor
a dor de pensar
pro odor
rastro de sentidos.

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Esse negócio que professor ensina, não rola.
o aluno que aprende.
O professor provoca.
provocador
pro odor
rastro de sentidos.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Show da louCURA 5 - relatos de um proxeneta

Entre conversas e causos... Melanie Klein, bem nasalizado. Entre a dificuldade de um de entender o que se passa nessa conversinha do “atravessando o travessia”, digo: tenho uma história para contar, era um homem que é de fevereiro, fevereteiro; de março, marcereteiro. Claro, não? Entendeu? Alguns sim, alguns não, alguns...
Na madrugada, um humano demasiado humano repete ‘a dor diz, passa momento, mas o prazer quer a eternidade’. Eterniza aquele momento de dor, toalha molhada na cabeça, ronco, fungados e muitas flatulências. Pergunta com voz cavernal de algum intelectual com crise de sinusite.
- Você tem medo de quê?
 - hum... (querendo fingir dormir)
- Você tem medo de quê? (Insistente)
A pergunta acorda uma inquietação há muito presente. O desejo de produzir resposta ainda mais inconclusa toma corpo e um possível diálogo se inventa.
- Tenho medo de desaparecer.
- Tenho medo de ficar só.
- Tenho medo de perder o controle a qualquer momento.
E a voz sinusitante cria entendimento:
- Eu também. Temos os mesmos medos: da morte, de ficar sozinho e de enlouquecer.  Você já se sentiu próximo a isso? Perder o controle?
- Sim. Sempre.
A loucura é de uma lógica da comunicação velada, muda, todos falam com todos, mas é como se eles falassem só com o imaginário deles-outros.
foto: Marina
foto:Marina


E o show da loucura atravessa a sua sexta edição, na madrugada de uma quarta, num quarto universitário. Na quinta edição, posterior à sexta, na manhã da quarta-feira, falas concisas, desejo de texto claro, tão claro que é capaz ser projetado para fora da conversa, num futuro dialético impossível e adoecido. Enquanto isso, o nome que não saiu na programação, o refletor que não acende, o data show que precisa ser desligado, as luzes que precisam ser apagadas. Preciso de amigos, muitos! Uns cantando junto, outros apagando as luzes, outros acendendo luzes, um para operar o data-show. Acontecimentos da memória.

A memória dos dias se constrói entre o que se retém e o que se esquece (de novo, de novo, até ficar inaudível).
A ação começa. Na entrada, a saída da mesa com a viagem da música: “eu vim de longe para encontrar o meu caminho”, cheguei à UNICAMP.
PERSONAGEM (Folheia o caderno e lê). No pano branco são projetadas imagens de fachadas de Hospitais psiquiátricos. E imagens internas também, se forem conseguidas com autorização das entidades.  P.S.: O Hospital Psiquiátrico Cândido Ferreira, em Campinas – SP, talvez autorize imagens.

Ao fundo da cena, por acaso, na síntese disjuntiva de criação, na falta das imagens artificializadas de hospitais, resta a imagem da UNICAMP.
Logo um corpo nu, é performance, sempre um corpo nu. Diferença entre teatro e performance, pois o figurino essencial em performance é o nu, em suas múltiplas formas em devir.
Uma plateia atenta. Mas as luzes ainda acessas. Quanta clareza!
- Alguém poderia apagar a luz, por favor?
Um corpo apressado vai e volta, volta e vai, para certificar-se de que estão todas apagadas. Surpresa! Uma ainda acesa.

**No pé de um amigo uma frieira. Doença. Um corpo que resiste a produção do fungo. Saúde. Desdobra e dobra de doença-saúde na criação de vida.
Mas ainda havia luz lá fora.
- Por favor, alguém poderia fechar as portas?
O corpo amigo atento, volta e vai, prontifica-se. “Clack.”
- Será que a porta só abre pelo lado de fora? Aguardemos.
Desconforto na disritmia do coração. Na projeção, corpos e grades e locais para clausura na diferença, loucura. Loucura da clausura. Forma acadêmica, sintoma endêmico da citação descartável, clausura bibliográfica. Mas agora, criação na clausura, fuga à clausura, louCURA. Sem separação entre o NAC1 e o NAC2.

foto: Marina


Discussão sobre sexualidade, homossexualidade. Filosofando, um amigo proxeneta expõe suas conclusões de pesquisa empírica: cavanhaque e ou moto com compartimento traseiro é indício de práticas homossexuais. Comprovação analisável in loco no Parque Taquaral, em Campinas, no qual práticas homossexuais masculinas acontecem, assim, tranquilo, à luz do dia. Naturalidade cotidiana como o quiosque, a árvore, o vento, as árvores, os gatos, os trilhos do bonde, o lago, os patos. Uma fuga da clausura social de padrões doentios. Loucura? Criação! Uma possível linha que perfura o cotidiano burlesco de um parque ao redor de mansões familiares de classe média. Corpos masculinos, tesos e criativos, resistentes. Uma fuga dentro da clausura. Um possível na criação de novas relações sociais. LouCURA.
Voltando ao causo dos cavanhaques e compartimentos traseiros para motos, seria isso o grande fetiche daqueles grupos de motoqueiros, ali cavanhaque e compartimento traseiro para motos é unanimidade. Por isso devem andar em grupo. Delícia. “Então era isso”. Será? Desconfio.

No intervalo, meu amigo especialista em cavanhaques e homossexualidades compartimentadas em motos, preocupa-se:
- Não posso esquecer a cueca. Se eu perco a cueca é sinônimo de problemas em casa. E imita, com tom de voz agudíssimo sua mulher: “Cadê a cueca?”. A gente às vezes cria também nossas clausuras para nos proteger da loucura em caos.
Em performance, a amizade foi capaz de trazer uma possível cura. A loucura que é clausura cria doença, mas também cria cura. Fuga possível na escrita, louCURA que é capaz de criar e criar e criar e...

foto: Marina


A performance não é o fim de uma obra, mas inícios em obra. Linhas de cura que desformam a forma, na academia, no manicômio, na Vida!


Este texto foi produzido graças a vivência durante a participação do evento V Seminário Conexões – Deleuze e Território e Fugas e...' e o 'XII Simpósio Internacional de Filosofia – Nietzsche/Deleuze', ocorrido entre os dia 20 e 23 de agosto de 2013, na UNICAMP, em Campinas - SP, no qual acontecera o Show da loCURA 5.

Trecho do texto “Solidão (o mundo é merda)”, Edson Costa Duarte [vivo]. Disponível em http://duarteazul.no.comunidades.net/index.php?pagina=1206516972 . Direitos gentilmente cedidos a mim.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

“Educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos” – Perigo!!! Educação do controle



fonte: internet

“Educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos”. Uma frase corriqueira a habitar territórios conhecidíssimos dos escolares: palestras, salas de aula, diretoria, secretaria, manuais pedagógicos... Agora, estampa a entrada de uma escola da cidade. De tão costumeira, ela soa como verdade absoluta e pior, absolutizável. Mas nela se esconde o que há de mais tenebroso nos sistemas de controle dos cidadãos: os pressupostos universais de normalidade.
Faz parte do senso comum reproduzir um discurso alucinado de que vale tudo para uma boa educação. Essa frase me perturbou durante um tempo, mas só agora consigo pensar violentado para tornar um pouco mais inteligível minhas inquietações. Esta afirmação está fundamentada em certo senso que limita outros tantos possíveis, seguem alguns, mas podem ainda haver outros tantos: que há um modelo eficaz de educação, que crianças são ingênuas e que não merecem ser punidas, adultos são casos perdidos e imutáveis, que toda educação não tem a ver com punição, que todo adulto que merece punição teve uma péssima educação, que toda criança que tiver uma boa educação será, com certeza, um adulto não infrator e por aí vai...
Pensando outras relações menos explícitas pelo senso comum, criadas na realidade produzida pela e na escola, esta frase pode perder seu caráter um tanto positivo e tomar ares fascistas. Pasmem, mas nenhuma teoria pedagógica é capaz de certificar que uma criança tendo acesso a certos tipos de informação, vá usá-los para o que todo mundo acha que é correto e bom. Cada sociedade, grupo social, indivíduo cria seus próprios valores em relação ao seu contexto. Nenhuma escola é igual a outra, mesmo sendo regida pelas mesmas leis. Mesmos as experiências educacionais mais bem sucedidas no Brasil ou no exterior não são totalizantes. Partem de realidades muito singulares e específicas.  Não é lendo ou gostando de Paulo Freire que serei capaz de fazer como ele. Esse talvez seja, ao contrário, o erro. Fazer como Freire fez é um erro, achar que serei capaz de pôr em prática assim como ele fez é algo de uma transcendência ingênua. Achar que é um método eficaz para formar cidadãos só tem criado isso que se vê: um monte de gente que lê Freire e o nega com mesma força de fascinação, como se, o que ele tivesse feito, fosse algo totalmente descolado da realidade da educação. Outro erro. Freire pensou o que penso intimamente implicado com os encontros na educação. No entanto, seu trabalho não pode ser lido como uma teoria construída, com eficácia garantida. É um recorte do caos, a melhor forma com que ele, juntos de outros, pode lidar com a realidade produzida por todos à sua volta, inclusive por ele mesmo. Mas saber que ele inventou muito serve para pôr pra pensar que é possível fazer de um modo diferente, sobretudo, diferente do modo de Paulo Freire, que é só de Paulo Freire.
Confunde-se ainda muito na escola a educação com punição, talvez por mais ingenuidade. Puni-se a criança para que o adulto não seja punido. Num amontoado de causa-efeito sem sentido algum. É de praxe alunos sem recreio, distribuição de pontos e mais pontos para participação em atividades, cópias e mais cópias. Talvez não seja ingenuidade como poderia apontar uma relação entre os estudos de Foucault (1987) e docilização dos corpos pelas instituições. Talvez não seja por acaso que a escola esteja repleta de um vocabulário que mais lembra prisões que a tal idealizada liberdade de aprendizagem: disciplina, uniforme, delegacia de ensino, controle rigoroso de horários, grades e mais grades que impedem de sair ou de entrar, pouco tempo para atividades livres e banhos de sol...
Educar crianças para não punir os adultos, ainda aposta numa impossibilidade de mudança perigosa. Quer dizer que um adulto infrator não pode mudar de conduta? Então, de fato, os sistemas de recuperação não estão falidos por acaso, é que os mesmos que querem educar, ou melhor, disciplinar e docilizar corpos infantis, são os mesmos que não acreditam e impõem situações degradantes aos encarcerados.
Mas o que estamos vivendo é que nem o sistema docilizador das escolas, nem o sistema judiciário-penitenciário tem dado conta de corpos infantis ou adultos. Na dúvida, tem-se punido crianças, adultos e com-fundido educação com punição.
Não acredito que existe ideal a ser atingido ou método educacional eficaz que impeça qualquer tipo de punição. Nem Paulo Freire, nem método chinês de aceleração do rendimento, nem educação estadunidense de crianças armadas para morrer... Educação talvez seja espaço para discutir outros modos de vida, inclusive, território no qual a punição deve ser sempre discutida, e educação também. Talvez quando atentarmos para que a educação pode muito mais que métodos eficazes de controle, possamos criar uma outra educação capaz de se perguntar sempre o que é punição e o que é educação: o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos. Mais que acreditar numa educação que tem resposta pra tudo, talvez seja mais interessante investir numa educação que questiona certos pressupostos e senso comum, que paralisam e impedem novas criações.



FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões.  5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

Para pôr pra pensar mais:

FOUCAULT, Michel. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos e escritos; V).
O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? Por Luiz B. L. Orlandi 
Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/orlandi/que_estamos_ajudando.pdf

sexta-feira, 17 de maio de 2013

grrraaaaannnnnnrrrrrrrrrrrr (mas que é loucura?)



A loucura não tem cara, não tem rosto, não tem sanidade. Mas também não tem nada de doença.
Triste que haja pessoas leigas ou especialista em dizer tanta coisa sobre ser louco passando por um certo tipo de sanidade.

Hoje, minha arte, meu trabalho, minha vida está a serviço da loucura. Uma loucura diferente dessas bem delimitadas pelas cartilhas e prescrições médicas psicologizadas. Longe dos territórios enclausurantes de verdades e medos.

Sim, somos todos loucos! 
Mas esta afirmação está para além de um dizer eloquente, porém, a favor de uma denúncia! Aqueles que nomeiam a loucura alheia e que segmentam a vida, sim, são loucos!
Infelizmente, alguns doidinhos, como diria carinhosamente Peter Pal Pelbart, já se encontram asfixiados, uns mais loucos que eles, aliciaram seus ares. E a jovialidade, a leveza, o falar sem sentido, mas no sentido, tornou-se doença. Louco é quem adoece os outros.

“Dizem que são loucos, por eu ser assim, mas louco é quem me diz... e não é feliz”

Somos todos esquizos. A dupla Deleuze&Guattari me ajudou a pensar outras relações de saúde! Porque sim, o esquizofrênico é um produtor universal tão potente que é capaz de criar outras tantas prisões: neurose, paranóia, psicose, histeria, artificialização da vida que nada cria além de um teatrinho papai-mamãe-filhinho dos impossíveis!

E antes que tenhamos “o esquizofrênico artificial, tal como o vemos no hospital, farrapo autístico produzido como entidade” (DELEUZE&GUATTARI, O anti-Édipo, p. 15) ainda podemos muito!E MUITO mesmo! E claro, não é fácil. Seguimos tentando!

É por isso que, em um GRITO escrito aqui, gostaria de mencionar alguns que me insPIRAM e fazem da minha loucura potência de vida: Clarissa Alcântara, Maria Helena Falcão, Sônia Clareto, Deleuze, Guattari, Claudia Meireles, Corpos Informáticos, Foucault, Erasmo de Roterdã, Edson Costa Duarte [vivo], Fernando Pessoa, Cazuza, Drummond, Nise da Silveira, Peter Pal Pelbart, Suely Rolnik, Angel Vianna... e outros tantos que encontro amiúde, falando com todos e com ninguém, habitando as desterritorializações da sanidade imposta!

Dia 18 de maio - Luta antimanicomial - Contra todos os tipos de manicômios possíveis, visíveis ou invisíveis



Show da louCURA 3 - foto: Rafaella Lima

quinta-feira, 16 de maio de 2013

TABACARIA


      Não sou nada.
      Nunca serei nada.
      Não posso querer ser nada.
      À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

      Janelas do meu quarto,
      Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
      (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
      Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
      Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
      Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
      Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
      Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
      Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

      Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
      Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
      E não tivesse mais irmandade com as coisas
      Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
      A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
      De dentro da minha cabeça,
      E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

      Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
      Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
      À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
      E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

      Falhei em tudo.
      Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
      A aprendizagem que me deram,
      Desci dela pela janela das traseiras da casa.
      Fui até ao campo com grandes propósitos.
      Mas lá encontrei só ervas e árvores,
      E quando havia gente era igual à outra.
      Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

      Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
      Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
      E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
      Gênio? Neste momento
      Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
      E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
      Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
      Não, não creio em mim.
      Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
      Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
      Não, nem em mim...
      Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
      Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
      Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
      Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
      E quem sabe se realizáveis,
      Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
      O mundo é para quem nasce para o conquistar
      E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
      Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
      Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
      Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
      Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
      Ainda que não more nela;
      Serei sempre o que não nasceu para isso;
      Serei sempre só o que tinha qualidades;
      Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
      E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
      E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
      Crer em mim? Não, nem em nada.
      Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
      O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
      E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
      Escravos cardíacos das estrelas,
      Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
      Mas acordamos e ele é opaco,
      Levantamo-nos e ele é alheio,
      Saímos de casa e ele é a terra inteira,
      Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

      (Come chocolates, pequena;
      Come chocolates!
      Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
      Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
      Come, pequena suja, come!
      Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
      Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
      Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

      Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
      A caligrafia rápida destes versos,
      Pórtico partido para o Impossível.
      Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
      Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
      A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
      E fico em casa sem camisa.

      (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
      Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
      Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
      Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
      Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
      Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
      Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
      Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
      Meu coração é um balde despejado.
      Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
      A mim mesmo e não encontro nada.
      Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
      Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
      Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
      Vejo os cães que também existem,
      E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
      E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

      Vivi, estudei, amei e até cri,
      E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
      Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
      E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
      (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
      Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
      E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

      Fiz de mim o que não soube
      E o que podia fazer de mim não o fiz.
      O dominó que vesti era errado.
      Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
      Quando quis tirar a máscara,
      Estava pegada à cara.
      Quando a tirei e me vi ao espelho,
      Já tinha envelhecido.
      Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
      Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
      Como um cão tolerado pela gerência
      Por ser inofensivo
      E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

      Essência musical dos meus versos inúteis,
      Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
      E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
      Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
      Como um tapete em que um bêbado tropeça
      Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

      Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
      Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
      E com o desconforto da alma mal-entendendo.
      Ele morrerá e eu morrerei.
      Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
      A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
      Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
      E a língua em que foram escritos os versos.
      Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
      Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
      Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

      Sempre uma coisa defronte da outra,
      Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
      Sempre o impossível tão estúpido como o real,
      Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
      Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

      Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
      E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
      Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
      E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

      Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
      E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
      Sigo o fumo como uma rota própria,
      E gozo, num momento sensitivo e competente,
      A libertação de todas as especulações
      E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

      Depois deito-me para trás na cadeira
      E continuo fumando.
      Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

      (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
      Talvez fosse feliz.)
      Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
      O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
      Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
      (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
      Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
      Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
      Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


    Álvaro de Campos, 15-1-1928

    um outro de Fernando Pessoa...