- Álvaro de Campos, 15-1-1928
- Não sou nada.
- Nunca serei nada.
- Não posso querer ser nada.
- À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
- Janelas do meu quarto,
- Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
- (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
- Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
- Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
- Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
- Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
- Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
- Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
- Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
- Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
- E não tivesse mais irmandade com as coisas
- Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
- A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
- De dentro da minha cabeça,
- E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
- Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
- Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
- À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
- E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
- Falhei em tudo.
- Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
- A aprendizagem que me deram,
- Desci dela pela janela das traseiras da casa.
- Fui até ao campo com grandes propósitos.
- Mas lá encontrei só ervas e árvores,
- E quando havia gente era igual à outra.
- Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
- Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
- Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
- E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
- Gênio? Neste momento
- Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
- E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
- Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
- Não, não creio em mim.
- Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
- Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
- Não, nem em mim...
- Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
- Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
- Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
- Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
- E quem sabe se realizáveis,
- Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
- O mundo é para quem nasce para o conquistar
- E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
- Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
- Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
- Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
- Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
- Ainda que não more nela;
- Serei sempre o que não nasceu para isso;
- Serei sempre só o que tinha qualidades;
- Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
- E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
- E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
- Crer em mim? Não, nem em nada.
- Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
- O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
- E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
- Escravos cardíacos das estrelas,
- Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
- Mas acordamos e ele é opaco,
- Levantamo-nos e ele é alheio,
- Saímos de casa e ele é a terra inteira,
- Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
- (Come chocolates, pequena;
- Come chocolates!
- Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
- Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
- Come, pequena suja, come!
- Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
- Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
- Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
- Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
- A caligrafia rápida destes versos,
- Pórtico partido para o Impossível.
- Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
- Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
- A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
- E fico em casa sem camisa.
- (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
- Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
- Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
- Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
- Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
- Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
- Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
- Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
- Meu coração é um balde despejado.
- Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
- A mim mesmo e não encontro nada.
- Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
- Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
- Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
- Vejo os cães que também existem,
- E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
- E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
- Vivi, estudei, amei e até cri,
- E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
- Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
- E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
- (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
- Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
- E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
- Fiz de mim o que não soube
- E o que podia fazer de mim não o fiz.
- O dominó que vesti era errado.
- Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
- Quando quis tirar a máscara,
- Estava pegada à cara.
- Quando a tirei e me vi ao espelho,
- Já tinha envelhecido.
- Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
- Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
- Como um cão tolerado pela gerência
- Por ser inofensivo
- E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
- Essência musical dos meus versos inúteis,
- Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
- E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
- Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
- Como um tapete em que um bêbado tropeça
- Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
- Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
- Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
- E com o desconforto da alma mal-entendendo.
- Ele morrerá e eu morrerei.
- Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
- A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
- Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
- E a língua em que foram escritos os versos.
- Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
- Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
- Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
- Sempre uma coisa defronte da outra,
- Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
- Sempre o impossível tão estúpido como o real,
- Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
- Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
- Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
- E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
- Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
- E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
- Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
- E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
- Sigo o fumo como uma rota própria,
- E gozo, num momento sensitivo e competente,
- A libertação de todas as especulações
- E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
- Depois deito-me para trás na cadeira
- E continuo fumando.
- Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
- (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
- Talvez fosse feliz.)
- Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
- O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
- Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
- (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
- Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
- Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
- Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
um outro de Fernando Pessoa...
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