sábado, 23 de maio de 2020

Abdias Nascimento, BBB20 e Políticas Públicas

Onipotente e Imortal, nº 4 - Adinkra Asante (1992). Abdias Nascimento. Acervo IPEAFRO

Hoje faz nove anos que Abdias Nascimento deixou-nos aqui. Uma vida, marcada por tanta luta e conquistas, que pode nos inspirar diante de um cenário devastador. Artista multifacetado: diretor, ator, dramaturgo, produtor, artista plástico... e político. Talvez seja um dos grandes que levou às últimas consequências o projeto de Teatro do Oprimido de Augusto Boal: teatro como um ensaio para a revolução. Abdias foi este revolucionário.

Junto com grandes como Aguinaldo Oliveira de Camargo, Wilson Tibério, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim e Ilena Teixeira, entre outros, criou o TEN – Teatro Experimental do negro, em 13 de outubro de 1944. Produziram um teatro negro e de negros ainda num tempo em que brancos pintavam a cara para interpretar personagens negras, experimento que permitiu outros desdobramentos para além da cena teatral. A começar pelas alianças: em 1945, cria o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com sede na UNE, o braço político do TEN. Uniu ensaios teatrais com aulas de alfabetização. Encenou obras de autores internacionais consagrados, como Eugene O-Neill – dramaturgo estadunidense branco que cedeu os direitos para a cia. Teve como diretores o polonês Zygmunt Turkow, o cenógrafo Santa Rosa e o dramaturgo Nelson Rodrigues. Depois do TEN, por conta de divergências políticas, veio o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade (1908-1974) outro grande. E como outro efeito o Balé Folclore de Mercedes Baptista (1953).

Da reunião a priori de artista vieram iniciativas políticas. Veio então 1ª Reunião do Congresso Negro (1945), o 1º Congresso do Negro Brasileiro (1950), a fundação do Instituto Nacional do Negro (1949) e do jornal Quilombo. Em 1964, o Curso de Introdução ao Teatro Negro e às Artes Negras. Depois disso, é perseguido pela Ditadura Brasileira, ao ponto de ser impedido de representar o Brasil no 1º Festival de Arte Negra no Senegal. Acaba exilado nos EUA.

Foram parte do TEN a grande Ruth de Souza (1930-2019), Haroldo Costa, José Maria Monteiro e Léa Garcia, com quem foi casado, pai de um casal de filhes, e quem ainda faz arte pelo Brasil.
Desde a década de 40, Abdias atuava na defesa de políticas de ações afirmativas para o povo negro, o que foi interrompido pelo Regime Militar de 1964. Durante este período, denunciou as atrocidades acontecidas no Brasil e assim que foram retomadas as políticas de abertura democrática, volta ao país. Participou da criação do Museu de Arte Negra (MAN), do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) com Dom Paulo Evaristo Arns. Fez parte do Movimento Negro Unificado (MNU) e da criação do PDT. Sim, Abdias Nascimento estava ao lado de Brizola durante a criação do PDT, embora tal história fique invisibilizada pela branquitude política hegemônica.

Abdias foi Deputado pelo PDT em 1981, o primeiro negro a assumir uma cadeira no parlamento com uma bandeira assumidamente antirracista; depois Senador pelo Rio em 1991 e 1996, além de Secretário de Defesa e Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado do Rio de Janeiro, no governo de Leonel Brizola.

Esta pequena reconstrução da trajetória de Abdias Nascimento, no ano em que movimentos negros ocuparam as redes sociais para disputar qual negre merecia mais a vitória num reality show racista e de uma emissora racista, é para pensar novas estratégias de luta. Abdias e cia foram pioneiros naquilo que fizeram porque não só questionaram o espaço destinado ao povo negro na arte, mas inventaram, com alianças das mais variadas, novos territórios de criação negra. Abdias viu que era preciso muito mais que disputar a estética ou cenário teatral, formação de mercado de espectador. Viu que era necessário disputar espaço em toda conjuntura social. Pautou políticas públicas, inventou territórios de encontro sabendo que os movimentos são muitos e variados.

Abdias Nascimento põe em ato o Teatro do Oprimido de Augusto Boal ao fazer da cena teatral do TEN muito mais que formação de atores e atrizes negras. O TEN e as ações de Abdias que se seguiram produziram cidadãos, atores e atrizes sociais negres, que puderam então disputar sua brasilidade, sua condição de brasileiros e brasileiras.

Hoje, com inúmeros artistas negres estrelando grandes produções do cenário nacional hegemônico, Abdias força a pensar para além da representatividade. Ele propõe PARTICIPAÇÃO nas decisões políticas que fazem arte no país. Sobretudo, num ano em que uma médica negra, Telma Assis, vence o BBB20 e a campanha da Rede Globo de valorização de mulheres no comando de suas produções, retrata apenas mulheres brancas. Ou quando a roteirista do filme sobre Marielle Franco, ao ser interpelada sobre a razão de não ter uma pessoa negra na direção, lamenta não ter “um Spike Lee brasileiro”. É sintomático que a maior empresa de entretenimento do país, uma empresa que se orgulha de profissionais como Glória Maria, Majú Coutinho, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Iza, Roberta Rodrigues e Milton Gonçalves, ou que tenha aberto suas portas para a talentosíssima Ruth de Souza, ainda na década de 60 e que, inclusive, tenha um grupo de discussão como o Diáspora, não tenha ainda em seus postos de comando pessoas negras.

Uma coisa é certa, vendo a vida de Abdias Nascimento não podemos negligenciar que os rompimentos democráticos no Brasil têm a ver com a perseguição ao povo negro. E que os regimes autoritários de ontem ou de hoje têm como foco principal torná-lo figurante de um programa B brasileiro. As cotas e as políticas de permanência nos Cursos de Artes, a discussão do Fundo Nacional de Cultura – PROCULTURA – e a Regulamentação das Mídias prevista na Constituição, mas ainda não feita, são assuntos urgentes para os movimentos negros ligados ou não à arte. Um dos exemplos mais comemorados em relação a Telma Assis é o fato de ela ser uma médica negra. Vale lembrar que ela foi a única negra de sua turma, diga-se de passagem, graças a uma política pública de acesso ao ensino superior, o ProUni. Já Babu Santana, o outro participante que disputou a preferência negra no BBB20, já tinha estrelado premiadíssimos filmes, como o “Tim Maia”, e antes de entrar no reality estava com grandes problemas financeiros. Parece que contar com a boa vontade de diretores e empresários brancos para figurar como personagens principais na novela da vida tem custado muito ao povo negro e merecido pouco esforço da branquitude. Vemos ainda como as políticas públicas são decisivas nas conquistas essenciais do povo negro. Honremos vidas como as de Abdias Nascimento. Dar continuidade ao seu trabalho de tornar artistas negres cidadãs, ou não dissociar a atividade política da atividade artística, talvez seja nosso modo de continuar a fazê-lo VIVO entre nós!

Salve, Abdias Nascimento!
Salve, Artistas Negres Brasileires!


fontes consultadas:
http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/historia-e-memoria/2014/12/10/abdias-nascimento
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra68778/onipotente-e-imortal-no-4-adinkra-asante

domingo, 26 de janeiro de 2020

No Brasil, não há Guerra Cultural, o que há  é o de sempre: o velho Genocídio Econômico

imagem da internet

Parece que um dado das últimas pesquisas sobre trabalho e renda no Brasil foi pouco discutido à esquerda: a interseccionlidade ou a relação entre desigualdades socioeconômicas no país e diferenças entre raça, classe e gênero.

Além de reafirmar a já conhecida desigualdade entre trabalhadores negros e brancos, entre mulheres negras e homens brancos, o recorte educacional chama muito mais atenção. 

Diferente do que se imagina (e principalmente, do que se acredita hegemonicamente!), a baixa escolaridade não produz maior diferença de renda entre negros e brancos. Enquanto negros com ensino fundamental completo e médio incompleto recebem o equivalente a 82% do que um trabalhador branco com mesma formação, um negro com ensino superior completo recebe apenas 69% do que um trabalhador branco, com mesma formação. Dito de outra forma, a formação profissional, no Brasil, não tem dado conta de combater o racismo e o machismo estrutural em nossa sociedade.

Porque esta disparidade de rendimento só não é pior que a diferença entre os rendimentos de uma trabalhadora negra em relação a um trabalhador branco. Neste recorte, as trabalhadoras negras recebem apenas o equivalente a 44% do rendimento de um trabalhador branco.

Os dados do IBGE mostram o que movimentos feministas negros, mulherismo africana, transfeminismo ou as pesquisas com metodologia interseccional denunciam há muito tempo: políticas de combate à desigualdade socioeconômica, no Brasil, não podem tratar de maneira isolada aspectos como raça, gênero e sexualidade e sua relação na produção de classe. 

A guerra que está em curso no país não é meramente cultural, fundamentada em ações de líderes religiosos neopentecostais. Os dados do IBGE provam que a gerra em curso no país é um genocídio econômico, que vítima homens e mulheres negras, homens e mulheres indígenas, homens e mulheres LGBTQI+, pobres brancos e mulheres brancas, e claro, tudo em nome de um deus.

E se nos causa escândalo as citações literais fascistas em discursos de autoridades nacionais, que nos sirva de alerta para que tenhamos certeza de que QUALQUER POLÍTICA ECONÔMICA OU SOCIAL que venha desse governo será racista, machista, lgbtfóbica, capacitista...

O que parece que a esquerda branca hegemônica ainda não entendeu é que Racismo e Machismo, por exemplo, não são meras estruturas comportamentais ou culturais. Ou, se Racismo e Machismo são culturais é porque são cultivados como políticas que tem garantido o genocídio econômico estrutural no país.

Se a Esquerda Branca (que não se vê como identitária ou Cultural) quer debater economia e desigualdade social, e não perder tempo com pautas morais ou comportamentais ou ainda "identitárias", vamos aos dados ECONÔMICOS: negros ocupam apenas 29% de cargos de chefia, mulheres pretas são apenas 3% das professoras da pós-graduação, o desemprego tem taxa de 11,3%, enquanto entre pessoas negras chega a mais de 15%. E o pior de todos os dados: a diferença de rendimento entre negros e brancos aumenta, proporcionalmente, com aumento da formação profissional.

O que uma parte da esquerda economicista não entende (ou parece que não Deseja entender) é que, se neoliberalismo é fascista, ele sempre foi, a priori, racista e machista (e Isso, esse inconsciente, os líderes neopentecostais já descobriram). Desse modo, não há luta antineoliberalismo ou antifascista possível que não seja antirracista, antimachista ou antilgbtfóbica.

Concordo com a esquerda branca em certo aspecto, com uma condição. Se as declarações diárias racistas e machistas do presidente e de seus ministros e ministras são cortinas de fumaça, que não devem ser fomentadas e naturalizadas com memes e sátiras mal feitas na internet, a ÚNICA forma de serem combatidas é com POLÍTICAS ECONÔMICAS definitivamente ANTIRRACISTA e ANTIMACHISTA, abandonando esse eufemismo da branquitude "Guerra Cultural".

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A carta de Palocci põe fim ao mito Lula - tempo das epístolas golpistas

A suspeita se confirmou. A segunda carta de Antonio Palocci (porque a primeira tem muito a ver com a segunda), Homem forte dos Governos Lula, ajuda a destruir o mito Lula inventado pelo PT e alimentado por grande parte da oposição incompetente. Aqueles que se sentiram traídos por Lula e pelos governos do PT enquanto massa homogênea tem oportunidade única de expurgar da culpa moralista cristã (pleonasmo necessário neste momento) dos hastags #ACulpaÉSuavotouNoLula #ptralhas #LulaLadrao. Para isso faço aqui uma transcrição da transcrição da carta de Palocci que pode ser facilmente encontrada na íntegra na internet:

“Sei dos erros e ilegalidades que cometi e assumo minhas responsabilidades. Mas não posso deixar de destacar o choque de ter visto Lula sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo.”
– Com o pleno emprego conquistado, com a aprovação do governo a níveis recordes, com o advento da riqueza (e da maldição) do pré-sal, com a Copa do Mundo, com as Olimpíadas, “o cara”, nas palavras de Barack Obama, dissociou-se definitivamente do menino retirante para navegar no terreno pantanoso do sucesso sem crítica, do “tudo pode”, do poder sem limites, onde a corrupção, os desvios, as disfunções que se acumulam são apenas detalhes, notas de rodapé no cenário entorpecido dos petrodólares que pagarão a tudo e a todos. (…) Nada importava, nem mesmo o erro de eleger e reeleger um mau governo, que redobrou as apostas erradas, destruindo, uma a uma, cada conquista social e cada um dos avanços econômicos tão custosamente alcançados, sobrando poucas boas lembranças e desnudando toda uma rede de sustentação corrupta e alheia aos interesses do cidadão. http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/carta-de-palocci-revela-proposta-de-leniencia-do-pt/

Chego a ficar emocionado com o tom de reconhecimento dos erros, da confissão quase religiosa pronto para ser absolvido com uma meia dúzias de pai-nossos e aves-marias que certamente o padre Moro lhe receitará. Fico perplexo como a carta é carregada de senso comum e de um cinismo que beira à psicose, pois embaralha os códigos, sobrecodificando encima daquilo que todos esperam ouvir: Lula é ladrão. Como pode Lula, sendo pobre ter se corrompido? Logo ele, tão Lula... gente como a gente. Nem tanto... Até agora não só não provaram que Lula foi corrompido, como parece mais clara sua articulação para que a corrupção fosse legada a um passado sombrio.

Palocci não é Geddel que era do PMDB; não é Delcídio, que já fora do PSDB até chegar ao PT, não era Collor que fora adversário de Lula e depois pousou ao seu lado... Palocci é um dos fundadores do PT, um dos Homens fortes do governo Lula e, diferente de Lula, sempre foi de classe média, médico, filho de artista plástico ítalo-brasileiro; entendia muito da luta entre “classes”, sobretudo de onde vinha. Pessoas como Palocci (e não é para demonizá-lo, apenas como constatação) nunca serão corrompidas, pois já estão, tudo em nome da "boa intenção". Não pensam que política pode ser de outro modo. Para eles, é impossível vencer o sistema-fantasma, é impossível um trabalhador se governar, ele sempre precisa de um patrão. Acostumamo-nos a ver o PT como um partido majoritariamente de trabalhadores, isto graças ao uso da imagem que fizeram de Lula (tanto à esquerda, quanto à direita). No entanto, no PT sempre tiveram Paloccis, Genuínos, Josés Dirceus ao lado de lula's... O PT não ganhou porque se aproximou do PMDB. O PT ganhou porque esses que lá já estavam, conheciam muito bem o jogo dos interesses político-partidários-de-mercado-de-classe-media. (Em 2002 foi a primeira vez que Lula teve que participar de uma prévia dentro do Partido dos Trabalhadores antes de ser candidato a eleição). Não por acaso a primeira cartinha escrita por Palocci foi a “Carta aos brasileiros” que, na verdade, fora uma “carta aos banqueiros, grandes empresários, agronegociantes...”, em 2002, se comprometendo em não transformar o Brasil numa Cuba sul-americana. Afinal, os pobres sempre quiseram o Lula. Ou qualquer coisa que não fosse o governo anterior, até então. Já a classe média, não.

Lula foi usado pelo PT com sua conivência e consentimento como mito conciliador de um desejo medíocre de parte de uma elite acometida por uma abominação ética, cognitiva e política (para ficar nas palavras de Chauí). Ao ser transformado em mito, Lula foi tentando produzir um modo de resistir e inventar políticas outras possíveis para a política partidária nacional. Começava o fim do mito, mesmo que não conscientemente desejado.

É uma abominação ética, uma ingenuidade, ou melhor, um desespero da moral escravizada a atitude de Palocci... aqui na Terra é condição sermos pobres e escravos, porque no céu seremos ricos e libertos... por isso todo sofrimento na Terra será compensado no céu! Tolinho!!! Palocci faz isso ao dizer que Lula tinha tudo e não fez as reformas necessárias (tributária, concessão das mídias, previdência, trabalhista, etc.) porque não quis. Mentira. Ele se esquece, não por acaso, que parte da aprovação do governo a níveis recordes” de Lula foi produzida por uma prática já comum nos governos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso e que só posteriormente foi nominada de “mensalão do PT”. E que depois levou à investigação do “mensalão do PSDB mineiro”, motivo pelo qual Eduardo Azeredo renunciou ao cargo de Deputado Federal em 2014. E parece óbvio que a investigação não chegou ao “mensalão do FHC”, durante o Governo Lula por um acordo entre alguns do PT, do PSDB e do PMDB, junto da mídia, do STF e tudo mais, que provavelmente tenha sido encabeçado por Palocci que era um dos líderes do Governo e que fora pego num escândalo por corrupção através de um recibo de um empregado seu. Ademais, o Governo Lula nunca teve maioria absoluta no Congresso para realizar reformas (lembra da reforminha da Previdência que Antonio Palocci conseguiu fazer no Governo Lula? risível). O Governo Dilma (que não necessariamente é Dilma) só obteve maioria graças ao que vemos hoje sendo investigado pela #lavaJato e pelas articulações do hábil Eduardo Cunha em manipulação com Michel Temer, o vice traidor dono de outra cartinha. (Poderíamos chamar este nosso período político como “as epístolas golpistas brasileiras”). E aí chega ao outro ponto.

A segunda carta de Palocci deixa claro o ressentimento que tomou conta da ala do PT que era povoada por correligionários de, poderíamos chamar assim, Palocci-lulado, no momento em que Lula escolhe como sucessora Dilma Rousseff. O mito estava a dois passos de ser desfeito. Embora Lula seja atacado, com muitas razões por ser machista, ao escolher por Dilma ele abriu outros possíveis que ele mesmo não poderia controlar. Tudo que o Brasil precisava não era de mais um “Lula”, mas de alguém que soubesse governa, independente de mitos; precisava de uma mulher que não tivesse dívida alguma, amizade alguma, mito algum a se reverenciar, apenas seu trabalho, já que ela mesma fora parte de alguns sucessos do governo anterior em relação à administração e ao desenvolvimento econômico. Isso, inclusive, foi propagandeado por parte da imprensa, ao apontar Dilma como a “cabeça” do Governo de Lula, tese logo abandonada em nome do machismo falocêntrico que domina nossa política institucional.

A mídia atacou Dilma desde a primeira campanha presidencial, forçando um distanciamento, que era real, entre ela e Lula. Distanciamento desejado por Lula, pois soube se esquivar de uma traição ao não envolver Dilma ou ao não denunciar Palocci e outros tantos... e soube fazer a melhor estratégia que era se retirar do poder, colocando alguém que não poderia ser manipulada nem mesmo pelas forças políticas que o compunha. (De onde vocês pensam que saíram grande parte dos achincalhes machistas que Dilma sofreu em relação ao modo de governar? Não apenas da oposição, com certeza.) Lula estava a um passo para deixar de ser mito, para se tornar mais um bom governante, caso o Governo Dilma superasse a crise política agravada pela crise econômica. Ou uma crise econômica totalmente implicada com a crise política. Ou tudo retroalimentava-se.

E aí vem a abominação política praticada por Palocci, quando diz que o Governo Dilma desfez o que por anos estava sendo feito. E desfez mesmo: até agora está provado que Dilma não manobrou para impedir as investigações da Lava Jato (como aconteceu com o mensalão. E inclusive, Palocci teve que se afastar do governo quando então Ministro da Casa Civil foi denunciado por corrupção); desonerou as empresas que já existiam em quase meio bilhão de reais para garantir a manutenção do emprego e retardar a reforma trabalhista (na esperança do trabalhador se conscientizar, coitada!); subsidiou a energia para tentar barrar a inflação e continuar a baratear a produção, na esperança de regularização das commodities internacionais e a manutenção do consumo a varejo interno, ao invés de distribuir dinheiro através de contratos para construção de estágio da Copa do Mundo, Vila Olímpica ou contratos com poucos grupos empresariais através de subsídios do BNDES com JBS, Odebrecht’s... E mais: a política de desoneração das empresas atacada pela oposição no Governo Dilma (leia-se PSDB, DEM, PMDB e os nanicos do Congresso) e endossada por Palocci, até hoje não foi revogada pelo Governo Golpista de Temer. Se tal política foi um erro, por que ainda vigora? Se os golpistas são maioria, por que ainda não mudaram? Eis o modelo que este senhor Palocci e grande parte dos políticos e parte de uma sociedade enganada, potencializa: que venham as mudanças, contanto que sejam mantidos os nossos privilégios. Mas isso dito por Palocci e Aécio Neves e Temer funciona de um único modo... significa: que os pobres sofram muito primeiro para nunca mais desrespeitarem o sistema.

Não se trata de endeusar Lula ou Dilma. Lula se desfaz enquanto mito não por ser um pobre vislumbrado pela riqueza e pelo poder, mas por abdicar do poder. Lula já estava afastado das articulações do PT desde a eleição de Dilma. E isso a mídia também divulgou. Em junho de 2013, os políticos envolvidos na Lava Jato viram uma oportunidade de enfraquecer Dilma e o seu governo (e aí leia-se petistas também). A ala golpista do “Volta Lula quero ter de volta um cargo no governo do PT” pouco fez para defender Dilma. A ideia era enfraquecê-la para que voltassem ao poder com Lula. Mas Lula descartou a hipótese e ao mesmo tempo, começaram uma perseguição descomunal a Lula, dando-lhe de presentes Sítios em Atibaia, Triplex mal reformados, pedalinhos enferrujados... para se livrarem das condenações. Enfraqueceram Dilma e junto a isso, quase matam Lula.

O Brasil hoje é o retrato da moral do escravo: que é explorado na Terra pelo senhor, dá sua alma a um Deus do céu, na esperança que Deus condene, após a morte, o seu senhor. Um Deus de escravos e não um Deus de nobres, no qual o pobre tem o dever de ser pobre, bom e escravo; porque o rico, sabemos, apesar de livre na Terra, é mal e já está condenado a escravidão celeste eterna. Liberdade passageira, só na Terra mesmo... Nesta lógica, caso existam suspeitas que pobre roubou é melhor condená-lo logo. É o retrato do nosso sistema prisional que não apenas prende ladrão de galinha, como mantém preso inocentes por faltas de provas. É o retrato da nossa condição moral que não permite que homens sejam bons governantes se não forem grandes santos ou demônios.

A nossa moralidade cínica tem desejado o extremismo da moralização das ações em Bolsonaros e Militares. Tem acreditado na máxima de todo político é corrupto enquanto espera pelo político exemplar, como se fosse coisa nata!

A destruição do mito Lula ajuda a pensar nas diferenças produzidas pelas ações dos homens lulas e mulheres dilmas. É que Lula e Dilma não são formas, mas devires. Não são políticos por vir, são os políticos possíveis e por serem possíveis, serão sempre perseguidos, como deveria ser qualquer outro.

O fim do mito Lula é momento para pensar que Palocci’s moralizados pelo Padre Moro não pode condenar alguém sem provas, porque não estamos no Juízo Final que apenas diz o que o outro fez a partir das anotações de seus caderninhos. Estamos na Terra e são necessárias provas para que haja condenação. Não podemos mais aceitar condenações por convicção, por carta, por moralismo; não podemos mais esperar por mitos (bolsomito, jamais!). Não podemos mais esperar por políticos santificados! Incorruptíveis! Temos que exigir a condenação de todos comprovadamente corrompidos! Não apenas com falação e preconceitos! Podem ser Eleições Gerais, Reforma Política por Constituinte, Revogação do Impeachment... Sei lá! Povo e Povo e Povo! Não podemos mais nos deixar ser enganados por este engodo de senhores ricos ladrões que exigem do pobre comportamento exemplar! Não podemos mais cair nesta lorota de banir um candidato e apenas um partido das eleições! Não podemos nos acovardar diante deste GOLPE tão cínico! Exijamos condenação! São pessoas em partidos que cometem crimes! O exemplo é a condenação de todos os corruptos junto às provas e não apenas de um suspeito porque foi pobre! Outras coisas precisam ser feitas. Sem provas, nunca! Quem deve condenar ou absolver Lula não é Palocci e nem Moro e nem a imprensa, nem nós, mas a Justiça. Mas temos visto que o sistema prisional brasileiro tem preferência por pobres, negros e nordestinos. E isso, nós, o Povo, não podemos admitir! Não podemos admitir que continuem a deixar soltos os que gozam na nossa cara diariamente no transporte do que é público!

Estejamos atentos e nada ressentidos. Palocci vai tarde e, por isso, Lula realmente foi um grande companheiro.


sexta-feira, 8 de setembro de 2017

UM DIA A ACADEMIA SERÁ DELEUZINA...

Fabiana Aparecida de Carvalho (Fabulosa)[1]
Cleberson Diego Gonçalvez (Maddox)[2]

            Este texto é um pequeno tratado contrário às perseguições direcionadas a um Anti-Édipo. Propositadamente, ele é sem "sem nexo, pierro, retrocesso"[3]; acadêmico e não acadêmico, anti-justificativa, anti-tese, anti-norma. Mesclado às nossas percepções ordinárias, devir-pequeninho, prosaico, coisa de passarinha diante dos que passarão[4]. O Lattes passa, a vida fica! O Lattes acumula, a educação expande! O Lattes é máquina do Estado, a produção de subjetividades é máquina de guerra... O Lattes é preciso (não se pode negar), "mas ele é crime, porque não quer dizer nada; recusamo-nos a avaliar alguém pelo Lattes"[5], não se avalia somente por ele, pela ABNT, por teses e artigos? O que escapa de artigos e teses? Desejo. Desejo de se contar. Eu desejo. Tu desejas. Nós desejamos. Eles Lattes. Nós mordemos. Vos-outros, nós-outros devemos lembrar: a vida não cabe no Lattes!
[...]
NãO SERei narcisisTÁ
nÃO serEI NARciSta
Não seRei narcisa
n ã o s e r e i n a r -c i s
n.ã.o.s.e.r.e.i

lattESPELHO
                                 eu
Eu     uE                                                       EU
                     Eu                   Eu       
                                 Eu
E
U
douto-doutô-doutor
d.r.
                                                        dÊ ErrÊ
                     dr
DR
                                 dr.: Não é título -
é discussão de relação![6]

[...]     
            No dia 19 de maio deste ano, a Página Web denominada “Universo Racionalista” publicou uma crítica acerca da dissertação de Tarcísio Moreira Mendes, defendida na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sob orientação da Profa. Dra. Sônia Clareto e com o título de: "Uma educação esquizita. Uma formação bricoleur processo ético e estético e político e econômico".
            A página fez contundentes alusões à metodologia lançada pelo aluno, garantindo que a mesma se desconectava e se descaracterizava dos passos e dos processos de produção científica acadêmica, tradicionalmente aceita como criteriosa e convalidada como séria pelos pares e pelas instâncias educacionais respeitadas no país. A dissertação também fora acusada de ser "uma vale tudo academicista e escrachado”, justificado, ademais, pelo desregramento filosófico das Ciências Humana – a deliberação para que fossem forjadas, na dissertação, experimentações pessoais e folhas escritas à revelia dos balizadores NBR da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e dos investimentos em pesquisa da Comissão de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES). Cinco dias após, o Jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, também divulgou uma nota sobre a produção, alegando que a mesma seria uma "impostura intelectual", expressão anteriormente defendida por Alan Sokal[7] (matemático e pesquisador americano que, explicitamente, declarou-se contrário à epistemologia e aos conceitos advindos da filosofia francesa), empregada para nomear os embustes que deturpam o método científico.
A birra tem causa e nomes: o pós-estruturalismo e o construtivismo social, considerados, pelo autor, um sistema de teorias vagas, deturpadoras das ciências exatas, desviantes dos conceitos físicos, inescrupulosas e poéticas. De Jacques Lacan (estruturalista por excelência, que estabeleceu correlações e analogias matemáticas para suas teorizações psicanalíticas sobre a formação do inconsciente e seu sistema “significante-significado-enunciado”), a Lucy Irigaray (feminista que denunciou a construção masculinizada da física e as metáforas sexistas empregadas em equações e conceitos explicativos produzidos por essa ciência), ninguém escapa da cruzada de Sokal. Gilles Deleuze é um dos mais acusados de empregar, reiteradamente, diversos conceitos e termos científicos fora do contexto e de compactuar com a rejeição racionalista da ciência tradicional.
As críticas à dissertação da UFJF, a justificativa dada junto à Sokal e os burburinhos em rede social da internet preenchem de escaramuças a velha dicotomia entre ciências humanas e ciências exatas, sendo, essa última, eleita em iluminismos e positivismos a verdade do mundo...
[...]
Invenção da Ciência

I
Se Francis Bacon tivesse nascido no Brasil, em 1561,
Chamar-se-ia Chico Torresmo e não seria metódico,
Mas seria mandatário de capitania hereditária...

II
Assinale a alternativa correta:
 (   ) Penso, logo (r)existo.
(   ) Penso, logo subexisto.
(   ) Penso, logo (d)existo.
(   ) Penso, logo insisto.
(   ) Descartes as anteriores

III
Problema: Os micróbios existiam antes de Pasteur?
Hipótese1: Os micróbios não existiam antes de Pasteur.
Hipótese2: Os micróbios foram inventados por Pasteur.
Experimento: meio-de-cultura-leve-ao-lume-resfrie-a-0oC
Comprovação: Os micróbios existem graças a Pasteur.
Erro de técnica: Micróbios em laboratório não são naturais.
Considerações finais: É preciso vacinar pessoas, Sr. Pasteur! E patentear o método na comunidade acadêmica.

V
O que a Royal Society disse ao ler o paper de Darwim à primeira vez?
Ora, Sir.! Vá pentear macacos![8]
[...]

            Deleuze e seus interlocutores questionaram, justamente, essa supremacia ao deslocarem a arborescência científica entroncada nas ciências exatas e proporem um modelo mais imanente de mundo, menos vertical, menos substrato de poder, menos hierárquico, sem pontos de começo ou fim, integrador, aberto, rizomático!
[...]
 – gengibre.bastão-do-imperador.irís.espada-de-são-jorge.bananeira.estrelitzia.alpínia.agapanto.
orquídea.samambaia.bananeira –
ceci n'est pas une leçon de botanique![9]

[...]
Tivemos o cuidado de ler a dissertação do mestrando e sua proposta de ser bricoleur a fim de pensar a arte-educação e os processos de criação na e para a escola e para a vida, munido, propositada-subjetiva-objetiva-simplesmente, das potências subjetivas que se valeram de seu próprio corpo.
            Embora nos consideremos pesquisadores alinhados às teorizações pós-estruturalistas, nossas leituras de Gilles Deleuze são um tanto quanto tímidas, porém inteligíveis para compreender o que tanto o filósofo francês quanto o acadêmico Tarcísio Mendes chamam de esquizoanálise: fluxos, métodos, agenciamentos contrários à paranóia do sistema capitalista, do dispositivo regulatório e do modelo de conhecimento centrado na hegemonia científica. Lembramos: as contribuições de Deleuze têm aos poucos perpassado os territórios da educação como ferramentas, aportes, bases que importam à crítica das grandes estruturais universais e à problematização de categorias e proposições acontecimentais mais ordinárias e menos totalizantes um desses deslocamentos possíveis é pensar os aspecto totalitário e excludente do método científico e uma ciência menor nas instituições de produção do conhecimento, entre elas, a Universidade!
[...]

PLÁGIO - DECALQUE - PASTICHE
You have to learn portuguese -
não escrevi, mas translitero:
Usted tiene que aprender portugués
Vous devez apprendre le portugais
Sie müssen Portugiesisch lernen
你必須學習葡萄牙語
عليك أن تتعلم البرتغالية
- A língua é um ato político -[10]
[...]

            A dissertação em questão contesta o formalismo acadêmico; engaja-se com outras formas de produção não autorizadas pelas políticas tradicionais da Universidade, abarca artefatos que vão desde o caderno de campo do artista, denominado caderno de bordas, até uma performance[11] realizada como um fragmento, um excerto da qualificação, que retoma o corpo como matéria primeira de nossa existência no mundo e de nossos processos de produção de subjetividades, de desejo, de inspiração, de inscrição. Porque o corpo é, ele próprio, um registro da cultura, lugar visível das marcas humanas que se revelam e se transformam na ação[12].
            É preciso ler o trabalho para se situar quanto à pulsão do aluno... Quanto ao seu desejo de potência... Quanto à sua inflexão em relação à ciência formalística e hierárquica que dita saberes legítimos para o mundo...
            Quem produz tese, dissertação, escrita, sabe que o processo criativo não é simplesmente sentar-se diante de um computador e digitar, a toque de caixa, tudo que se entende sobre o objeto pesquisado, sobre os dados conseguidos e sobre as circunstâncias metodológicas metrificadas e ordenadas na norma culta da terceira pessoa do plural. A criação não é um ato linear e, mesmo que se trate de inspiração e de esforço, ela é fluxo, linha de fuga e potência que não cabem nas margens de 200 páginas com citações. Tarcísio não reduz os resultados de sua pesquisa ao seu corpo, mas, sobretudo, e o mais bonito de sua produção, ele nomina, no devir pesquisa, que o corpo é ele próprio a vida.
            Entendemos escrita e a autoria como micropolíticas de resistências, como escritas e cuidados de si, como possibilidades e vislumbres num mundo ocupado por ditames e mandos... Entendemos também que ser político e política hoje é, antes de qualquer coisa, buscar práticas de sensibilidades que gritam, desagradam, incomodam as grandes estruturas e mobilizam ações moleculares. Aquilo que se funda no consenso - de fala, de escrita, de expressões, de sistemas, de vidas subjugadas por tecnologias de poder - é, certamente, um possível aval à mediocridade e à subordinação[13]!


Quero uma escrita que se torne carne –
matéria bruta, abjeta, humana –
para conjugar sígnos, metáforas,
pessoas, tempo, semânticas
com a inflexão das palavras profundas
e dos gostos incomuns.
Por não compreender a literalidade –
Tão pobre e rasa e canhestra,
Figurativa e densa eu sou.
Minhas paixões são obras abertas
plenas de conotações de gênero
e liberdades...
Nas minhas tortas linhas -
bordadas de garatujas e exclamações –
uma deusa já manejou seu buril!
Imprimiu em água-forte...
Abençoando o entalhe certeiro,
grafou a profecia que me persegue:
VÁ SER R-ÚNICA NA VIDA!
E após a conjura dessa sina
Não perdôo mais os desejos apagados[14]...

[...]
A perspectiva deleuziana corrompe a perspectiva do sujeito universal que  constrói linearmente seu aprendizado e traz a noção de transitoriedade, de entre-lugar, de deslocamento, de desenraizamento, de zonas de contato. O que importa não é a categorização ou a fixidez de conceitos. O que importa, numa esquizoanálise, é idéia de andar, de fruir com o movimento e com as mudanças que se dão no trajeto, nos desvios de rota, nos retornos sobre si sempre de formas e modos diferentes, experimentando várias possibilidades de identidades, ou seja, em sendo pesquisador, trafegar por um fora e por um dentro da academia e da pesquisa, ora passivamente percebido como o contorno intocável da experiência (pontos de angústia, de vergonha, de inibição, de criação), ora perseguido ativamente como sua linha de fuga, portanto, como a própria zona de experiência. Importa o mover e nele o pesquisador reterritorializa-se em sua própria desterritorialização[15], reinventa a ciência ao fugir da ciência, compõe subjetividades para si e para as pessoas. Se a questão fosse perseguir uma identidade de pesquisador acadêmico, a resposta seria: identidade não há, o que há é a (de)formação, o que há são identificações. Esse fazer - desfazer - trafegar é aquilo que Deleuze chama de de agenciamento e de mutação.
 Nesse sentido, uma pesquisa não é apenas local de estruturação, mas, também de passagens, um desconfiar das estratégias localizadoras totalizantes, quer sejam elas científicas ou econômicas, na representação dos campos culturais, de objetos estudados, de sujeitos da arte ou de sujeitos da educação. Fazer da pesquisa um devir experimental é também possibilitá-la como local de visibilidade de espaços e de sujeitos que se cruzam, de historicidades construídas e discutidas que ficam à margem da academia, de deslocamentos, de interferências, de interações dentro e fora das universidades e de negociações que não estão aprisionadas na ciência universal.
[...]
Nenhum mundo fala sua verdade livre de metáfora e livre de história por meio da objetividade neutra da ciência[16]. Nenhuma ciência está livre de cultura. A ciência também é um ato político. A neutralidade é cega. A unanimidade é burra. Quem disse isso não era cientista. Que ciência você escolhe?


[...]

            É junto à dissertação produzida na Faculdade de Educação da UFJF que dizemos: é preciso um devir Tarcísio na academia!
No texto “Carta a um crítico severo”, de 1973, Deleuze traçou algumas palavras direcionadas a uma possível crítica referente ao seu trabalho; estilhaçou para si mesmo alguns discursos, como se quisesse, numa vontade de potência, organizar respostas para aquilo que estava por vir: “Você é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim. Mais um esforço…”[17] . Esforçou-se para compreender as críticas como percurso e trilhas (as muitas trilhas) feitas pelo autor. Nesse sentido, podemos até pensar em uma ‘quase crítica’, na qual as fontes denunciantes perdem-se quando desconhecem aquilo de que se fala.
O trabalho de Tarcísio é um rizoma onde quem entra não saí! Não existem saídas num rizoma, apenas linhas de possíveis entradas e fugas. Entretanto, por onde seus críticos e críticas entraram e o que encontraram por lá?
Deleuze já deixou respostas para quem acessa e se atreve a constituir fragmentos Bricoleur em uma educação esquisita... Afinal, as críticas querem o quê? (Re)Escrever o percurso de Tarcísio “por humor, acaso, sede de dinheiro ou de ascensão social.”?[18].
A arte (tal qual a filosofia) tem um espaço razoável na escola e na universidade quando serve para princípios decorativos de festas, hall de entrada de eventos, confecção de materiais lúdicos, ‘masturbação’ de artistas clássicos como memoráveis e insuperáveis, instauração de uma beleza de acordo com a norma vigente socialmente... Enfim, os gritos que fogem disso tudo são jogados à margem por aqueles e aquelas que engessam as pesquisas, definem o que pode e o que não pode ser pesquisado, criado, vivido, levado aos territórios escolares, aprendido, compartilhado... Todavia, a arte é devir, não cessa, não para, atormenta o estado ‘natural’ da vida e não pede licença para entrar ou surgir; ela invade, instaura-se, permanece, acaba-se, rompe, destrói, reconstrói, processa-se, cerca-nos... como a dissertação de Tarcísio, que em suas fissuras e aglomerados nas bordas, transborda-nos, fazem-nos cair... literalmente, no chão. É como se dissesse: “Olá, possíveis! Aqui estou, vamos (re) pensar isso aí”...
As críticas por sobre o percurso produzido pelo autor e sua orientadora, na pós-graduação em Educação da UFJF, foram subsídios para que comentários extremos pululassem nas redes sociais, tanto aqueles realizados pelos ditos leigos e leigas, quanto aqueles comentários ululados por aqueles e aquelas que se nomeiam pares acadêmicos; compreendemos esses como algo que “não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo”[19].  A vigília funciona com a coerção: mesmo não sabendo do que se trata, do que se fala e de qual lugar essa voz e essa dissertação ecoam, é preciso vigiá-las, deixa-las à margem, apenas porque não podem, não estão autorizadas, não estão julgadas como corretas.
Acreditamos, entretanto, que o trabalho, em si, cumpre com um não papel, uma não coisa, pois “um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o percorrem”[20].  Dessa maneira, a “ciência” utilizada por Tarcísio desdobra-se em múltiplos, despersonaliza-se (se não ocorresse isso, não seria Deleuze ou uma produção deleuziana – se é que tal coisa existe!), e seu ‘não papel’ (des)materializa-se em vários âmbitos.

[...]
Sou um montante de rostos sobrepostos
de rostos que vi em outros,
de rostos que trago em mim.

Sou rostos fantásticos,
reflexos enebriantes,
tensões entre desejo e escape.

Sou rostos estéticos,
paisagens em luz e sombra,
estilhaços imagéticos.

Estou num instante desfigurada,
Sou rostos do porvir
em construções de areias e sonhos.

Sou nada e fascículos inteiros,
Formatos inexatos, fragmentos,
errância e permanência.

Sou por inteira multifaces,
Memória reavivada e o hoje,
E única tão vária assim[21].

[...]
Não temos uma pesquisa, temos milhares, temos muitas entradas! Tente engessar isso, enquadrar algo que escapa, que foge, que é linha de fuga... Eis um desafio!
Se o nome do autor escapa-nos, o corpo de seu trabalho se parte; a educação esquizita não apenas entra em fluxos como nos torna (leitores e leitoras) um conjunto de singularidades soltas, de nomes, sobrenomes, unhas, animais, pequenos acontecimentos[22]. Existem algumas possibilidades de leituras para o trabalho de Tarcísio, e o próprio Deleuze nos apresentou essas diferentes formas. Numa tentativa quase vã, tentamos compreender quais delas foram usadas por seus críticos e críticas:

É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica[23].

Tarcísio e sua orientadora, bem como seu grupo de estudos, estão amparados pelas leituras que fazem de Deleuze e pelos modos de (re)pensar novos a vida, a escrita, a filosofia, a ciência e arte-educação. Assim sendo, apostamos que pesquisa seja “uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa”[24]. A escrita do trabalho lida com atenção extrema, é, além disso, um fluxo que entra numa espécie de contra-corrente daquilo que se produz nas universidades brasileiras. Ela é, sobretudo, a (re)existência dos modos de ler, pensar, agir e transitar pelas fissuras da arte e da educação, ofertando-nos possíveis outras possibilidades de nos percebermos e nos afetarmos.

[...]

“Decepcionar é um prazer”[25]!
Continuaremos decepcionando, sempre...


REFERÊNCIAS (porque não somos loucos de cair na crítica por não ter citado nossas fontes dentro da ABNT)
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed, 34, 1992.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n.5, p. 07-4, 1995.
SOARES, Carmem Lúcia. Notas sobre o corpo. Entretextos Entresexos, Campinas, v.1, n.1, p. 49-52. 1997.
SOKAL, Alain; BRICMONT, Jacques. Imposturas Intelectuales. Barcelona: Editora Paidós, 1999.
ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 241-51, fev./set. 1993.





[1] Nome artístico, contadeira de causos, bióloga corrompida e hibridizada pela estrada afora. Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Biologia.
[2] Nome Social, artístico, esquizo; alter-ego mezzo modesto. Universidade Estadual de Maringá. PPE/UEM.
[3] Composto com Cazuza e isso também "Faz parte do meu show".
[4] Lembra Mario Quintana que os caminhos são sempre atravessados... Eles passarão; portanto, que voem os passarinhos!
[5] Diz Marilena Chauí, que tem um Lattes bem gordo, porém, em sucessivas dobras por sobre docência, pesquisa e militância, não se restringe a esse currículo e nem aos processos subjetivadores da educação burguesa.
[6] Fragmento do Caderno de Artista de Fabiana.
[7] Foi um soco na potência voltar a ler Alan Sokal e  Jacques Bricmont (1999)
[8] Fragmento do Caderno de Artista de Fabiana
[9] Ibidem.
[10] Não estava, mas agora é fragmento do Caderno de Artista de Fabiana
[11] Por que a academia implica tanto com as performances que envolvem nudez e a exposição do corpo, do sexo e das leituras de gênero impressas em nossas peles?
[12] Composto com Carmem Lúcia Soares (1997).
[13] Composto com Suelí Rolnik (1993).
[14] Fragmento do Caderno de Artista de Fabiana
[15] (des)Valei-nos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992).
[16] Pensado juntamente com Donna Haraway (1995).
[17] Fizemos um exercício de pensar a crítica aos nossos trabalhos “pós” com Deleuze (1992, p.11).
[18] Ibidem, p.11.
[19] Ibidem, p. 12.
[20] Ibidem, p. 15.
[21] Fragmento do Caderno de Artista de Fabiana
[22] Ritornello em Deleuze (1992).
[23] Ibidem, p. 16-17.
[24] Ibidem, p. 17.
[25] Ibidem, p. 18.

_____________________________________________________

Pio X por Francis Bacon
retirado da internet


Muito obrigado Fabiana Fabulosa e Maddox.
Qualquer coisa que diga seria um impossível da palavra.
Deixo então meu silêncio para que as suas palavras ecoem e ajude tantos outros esquizos como nós a produzir vida na e da academia!
Beijuz