Onipotente e Imortal, nº 4 - Adinkra Asante (1992). Abdias Nascimento. Acervo IPEAFRO |
Hoje faz nove anos que
Abdias Nascimento deixou-nos aqui. Uma vida, marcada por tanta luta e conquistas, que pode nos inspirar diante de um cenário devastador. Artista multifacetado:
diretor, ator, dramaturgo, produtor, artista plástico... e político. Talvez
seja um dos grandes que levou às últimas consequências o projeto de Teatro do
Oprimido de Augusto Boal: teatro como um ensaio para a revolução. Abdias foi
este revolucionário.
Junto com grandes como Aguinaldo
Oliveira de Camargo, Wilson Tibério, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim
e Ilena Teixeira, entre outros, criou o TEN – Teatro Experimental do negro, em
13 de outubro de 1944. Produziram um teatro negro e de negros ainda num tempo em
que brancos pintavam a cara para interpretar personagens negras, experimento
que permitiu outros desdobramentos para além da cena teatral. A começar pelas
alianças: em 1945, cria o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com sede na UNE,
o braço político do TEN. Uniu ensaios teatrais com aulas de alfabetização. Encenou
obras de autores internacionais consagrados, como Eugene O-Neill – dramaturgo estadunidense
branco que cedeu os direitos para a cia. Teve como diretores o polonês Zygmunt
Turkow, o cenógrafo Santa Rosa e o dramaturgo Nelson Rodrigues. Depois do TEN,
por conta de divergências políticas, veio o Teatro Popular Brasileiro, de
Solano Trindade (1908-1974) outro grande. E como outro efeito o Balé Folclore
de Mercedes Baptista (1953).
Da reunião a priori de artista
vieram iniciativas políticas. Veio então 1ª Reunião do Congresso Negro (1945),
o 1º Congresso do Negro Brasileiro (1950), a fundação do Instituto Nacional do
Negro (1949) e do jornal Quilombo. Em 1964, o Curso de Introdução ao Teatro Negro
e às Artes Negras. Depois disso, é perseguido pela Ditadura Brasileira, ao
ponto de ser impedido de representar o Brasil no 1º Festival de Arte Negra no
Senegal. Acaba exilado nos EUA.
Foram parte do TEN a
grande Ruth de Souza (1930-2019), Haroldo Costa, José Maria Monteiro e Léa
Garcia, com quem foi casado, pai de um casal de filhes, e quem ainda faz arte pelo
Brasil.
Desde a década de 40,
Abdias atuava na defesa de políticas de ações afirmativas para o povo negro, o
que foi interrompido pelo Regime Militar de 1964. Durante este período,
denunciou as atrocidades acontecidas no Brasil e assim que foram retomadas as
políticas de abertura democrática, volta ao país. Participou da criação do
Museu de Arte Negra (MAN), do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-brasileiros
(IPEAFRO) com Dom Paulo Evaristo Arns. Fez parte do Movimento Negro Unificado (MNU)
e da criação do PDT. Sim, Abdias Nascimento estava ao lado de Brizola durante a
criação do PDT, embora tal história fique invisibilizada pela branquitude política
hegemônica.
Abdias foi Deputado pelo
PDT em 1981, o primeiro negro a assumir uma cadeira no parlamento com uma bandeira
assumidamente antirracista; depois Senador pelo Rio em 1991 e 1996, além de Secretário
de Defesa e Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado do Rio de Janeiro,
no governo de Leonel Brizola.
Esta pequena reconstrução
da trajetória de Abdias Nascimento, no ano em que movimentos negros ocuparam as
redes sociais para disputar qual negre merecia mais a vitória num reality show racista
e de uma emissora racista, é para pensar novas estratégias de luta. Abdias e cia
foram pioneiros naquilo que fizeram porque não só questionaram o espaço
destinado ao povo negro na arte, mas inventaram, com alianças das mais variadas,
novos territórios de criação negra. Abdias viu que era preciso muito mais que
disputar a estética ou cenário teatral, formação de mercado de espectador. Viu
que era necessário disputar espaço em toda conjuntura social. Pautou políticas
públicas, inventou territórios de encontro sabendo que os movimentos são muitos
e variados.
Abdias Nascimento põe em
ato o Teatro do Oprimido de Augusto Boal ao fazer da cena teatral do TEN muito
mais que formação de atores e atrizes negras. O TEN e as ações de Abdias que se
seguiram produziram cidadãos, atores e atrizes sociais negres, que puderam
então disputar sua brasilidade, sua condição de brasileiros e brasileiras.
Hoje, com inúmeros artistas
negres estrelando grandes produções do cenário nacional hegemônico, Abdias força
a pensar para além da representatividade. Ele propõe PARTICIPAÇÃO nas decisões
políticas que fazem arte no país. Sobretudo, num ano em que uma médica negra, Telma
Assis, vence o BBB20 e a campanha da Rede Globo de valorização de mulheres no
comando de suas produções, retrata apenas mulheres brancas. Ou quando a
roteirista do filme sobre Marielle Franco, ao ser interpelada sobre a razão de
não ter uma pessoa negra na direção, lamenta não ter “um
Spike Lee brasileiro”. É sintomático que a maior empresa de entretenimento
do país, uma empresa que se orgulha de profissionais como Glória Maria, Majú
Coutinho, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Iza, Roberta Rodrigues e Milton Gonçalves,
ou que tenha aberto suas portas para a talentosíssima Ruth de Souza, ainda na
década de 60 e que, inclusive, tenha um grupo de discussão como o Diáspora, não
tenha ainda em seus postos de comando pessoas negras.
Uma coisa é certa, vendo
a vida de Abdias Nascimento não podemos negligenciar que os rompimentos
democráticos no Brasil têm a ver com a perseguição ao povo negro. E que os regimes
autoritários de ontem ou de hoje têm como foco principal torná-lo figurante de
um programa B brasileiro. As cotas e as políticas de permanência nos Cursos de
Artes, a discussão do Fundo Nacional de Cultura – PROCULTURA – e a Regulamentação
das Mídias prevista na Constituição, mas ainda não feita, são assuntos urgentes
para os movimentos negros ligados ou não à arte. Um dos exemplos mais
comemorados em relação a Telma Assis é o fato de ela ser uma médica negra. Vale
lembrar que ela foi a única negra de sua turma, diga-se de passagem, graças a
uma política pública de acesso ao ensino superior, o ProUni. Já Babu Santana, o
outro participante que disputou a preferência negra no BBB20, já tinha estrelado
premiadíssimos filmes, como o “Tim Maia”, e antes de entrar no reality estava
com grandes problemas financeiros. Parece que contar com a boa vontade de diretores
e empresários brancos para figurar como personagens principais na novela da
vida tem custado muito ao povo negro e merecido pouco esforço da branquitude. Vemos
ainda como as políticas públicas são decisivas nas conquistas essenciais do
povo negro. Honremos vidas como as de Abdias Nascimento. Dar continuidade ao
seu trabalho de tornar artistas negres cidadãs, ou não dissociar a atividade
política da atividade artística, talvez seja nosso modo de continuar a fazê-lo VIVO
entre nós!
Salve, Abdias Nascimento!
Salve, Artistas Negres Brasileires!
fontes consultadas:
http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/historia-e-memoria/2014/12/10/abdias-nascimento
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra68778/onipotente-e-imortal-no-4-adinkra-asante
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