sábado, 23 de maio de 2020

Abdias Nascimento, BBB20 e Políticas Públicas

Onipotente e Imortal, nº 4 - Adinkra Asante (1992). Abdias Nascimento. Acervo IPEAFRO

Hoje faz nove anos que Abdias Nascimento deixou-nos aqui. Uma vida, marcada por tanta luta e conquistas, que pode nos inspirar diante de um cenário devastador. Artista multifacetado: diretor, ator, dramaturgo, produtor, artista plástico... e político. Talvez seja um dos grandes que levou às últimas consequências o projeto de Teatro do Oprimido de Augusto Boal: teatro como um ensaio para a revolução. Abdias foi este revolucionário.

Junto com grandes como Aguinaldo Oliveira de Camargo, Wilson Tibério, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim e Ilena Teixeira, entre outros, criou o TEN – Teatro Experimental do negro, em 13 de outubro de 1944. Produziram um teatro negro e de negros ainda num tempo em que brancos pintavam a cara para interpretar personagens negras, experimento que permitiu outros desdobramentos para além da cena teatral. A começar pelas alianças: em 1945, cria o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com sede na UNE, o braço político do TEN. Uniu ensaios teatrais com aulas de alfabetização. Encenou obras de autores internacionais consagrados, como Eugene O-Neill – dramaturgo estadunidense branco que cedeu os direitos para a cia. Teve como diretores o polonês Zygmunt Turkow, o cenógrafo Santa Rosa e o dramaturgo Nelson Rodrigues. Depois do TEN, por conta de divergências políticas, veio o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade (1908-1974) outro grande. E como outro efeito o Balé Folclore de Mercedes Baptista (1953).

Da reunião a priori de artista vieram iniciativas políticas. Veio então 1ª Reunião do Congresso Negro (1945), o 1º Congresso do Negro Brasileiro (1950), a fundação do Instituto Nacional do Negro (1949) e do jornal Quilombo. Em 1964, o Curso de Introdução ao Teatro Negro e às Artes Negras. Depois disso, é perseguido pela Ditadura Brasileira, ao ponto de ser impedido de representar o Brasil no 1º Festival de Arte Negra no Senegal. Acaba exilado nos EUA.

Foram parte do TEN a grande Ruth de Souza (1930-2019), Haroldo Costa, José Maria Monteiro e Léa Garcia, com quem foi casado, pai de um casal de filhes, e quem ainda faz arte pelo Brasil.
Desde a década de 40, Abdias atuava na defesa de políticas de ações afirmativas para o povo negro, o que foi interrompido pelo Regime Militar de 1964. Durante este período, denunciou as atrocidades acontecidas no Brasil e assim que foram retomadas as políticas de abertura democrática, volta ao país. Participou da criação do Museu de Arte Negra (MAN), do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) com Dom Paulo Evaristo Arns. Fez parte do Movimento Negro Unificado (MNU) e da criação do PDT. Sim, Abdias Nascimento estava ao lado de Brizola durante a criação do PDT, embora tal história fique invisibilizada pela branquitude política hegemônica.

Abdias foi Deputado pelo PDT em 1981, o primeiro negro a assumir uma cadeira no parlamento com uma bandeira assumidamente antirracista; depois Senador pelo Rio em 1991 e 1996, além de Secretário de Defesa e Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado do Rio de Janeiro, no governo de Leonel Brizola.

Esta pequena reconstrução da trajetória de Abdias Nascimento, no ano em que movimentos negros ocuparam as redes sociais para disputar qual negre merecia mais a vitória num reality show racista e de uma emissora racista, é para pensar novas estratégias de luta. Abdias e cia foram pioneiros naquilo que fizeram porque não só questionaram o espaço destinado ao povo negro na arte, mas inventaram, com alianças das mais variadas, novos territórios de criação negra. Abdias viu que era preciso muito mais que disputar a estética ou cenário teatral, formação de mercado de espectador. Viu que era necessário disputar espaço em toda conjuntura social. Pautou políticas públicas, inventou territórios de encontro sabendo que os movimentos são muitos e variados.

Abdias Nascimento põe em ato o Teatro do Oprimido de Augusto Boal ao fazer da cena teatral do TEN muito mais que formação de atores e atrizes negras. O TEN e as ações de Abdias que se seguiram produziram cidadãos, atores e atrizes sociais negres, que puderam então disputar sua brasilidade, sua condição de brasileiros e brasileiras.

Hoje, com inúmeros artistas negres estrelando grandes produções do cenário nacional hegemônico, Abdias força a pensar para além da representatividade. Ele propõe PARTICIPAÇÃO nas decisões políticas que fazem arte no país. Sobretudo, num ano em que uma médica negra, Telma Assis, vence o BBB20 e a campanha da Rede Globo de valorização de mulheres no comando de suas produções, retrata apenas mulheres brancas. Ou quando a roteirista do filme sobre Marielle Franco, ao ser interpelada sobre a razão de não ter uma pessoa negra na direção, lamenta não ter “um Spike Lee brasileiro”. É sintomático que a maior empresa de entretenimento do país, uma empresa que se orgulha de profissionais como Glória Maria, Majú Coutinho, Lázaro Ramos, Taís Araújo, Iza, Roberta Rodrigues e Milton Gonçalves, ou que tenha aberto suas portas para a talentosíssima Ruth de Souza, ainda na década de 60 e que, inclusive, tenha um grupo de discussão como o Diáspora, não tenha ainda em seus postos de comando pessoas negras.

Uma coisa é certa, vendo a vida de Abdias Nascimento não podemos negligenciar que os rompimentos democráticos no Brasil têm a ver com a perseguição ao povo negro. E que os regimes autoritários de ontem ou de hoje têm como foco principal torná-lo figurante de um programa B brasileiro. As cotas e as políticas de permanência nos Cursos de Artes, a discussão do Fundo Nacional de Cultura – PROCULTURA – e a Regulamentação das Mídias prevista na Constituição, mas ainda não feita, são assuntos urgentes para os movimentos negros ligados ou não à arte. Um dos exemplos mais comemorados em relação a Telma Assis é o fato de ela ser uma médica negra. Vale lembrar que ela foi a única negra de sua turma, diga-se de passagem, graças a uma política pública de acesso ao ensino superior, o ProUni. Já Babu Santana, o outro participante que disputou a preferência negra no BBB20, já tinha estrelado premiadíssimos filmes, como o “Tim Maia”, e antes de entrar no reality estava com grandes problemas financeiros. Parece que contar com a boa vontade de diretores e empresários brancos para figurar como personagens principais na novela da vida tem custado muito ao povo negro e merecido pouco esforço da branquitude. Vemos ainda como as políticas públicas são decisivas nas conquistas essenciais do povo negro. Honremos vidas como as de Abdias Nascimento. Dar continuidade ao seu trabalho de tornar artistas negres cidadãs, ou não dissociar a atividade política da atividade artística, talvez seja nosso modo de continuar a fazê-lo VIVO entre nós!

Salve, Abdias Nascimento!
Salve, Artistas Negres Brasileires!


fontes consultadas:
http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/historia-e-memoria/2014/12/10/abdias-nascimento
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra68778/onipotente-e-imortal-no-4-adinkra-asante

domingo, 26 de janeiro de 2020

No Brasil, não há Guerra Cultural, o que há  é o de sempre: o velho Genocídio Econômico

imagem da internet

Parece que um dado das últimas pesquisas sobre trabalho e renda no Brasil foi pouco discutido à esquerda: a interseccionlidade ou a relação entre desigualdades socioeconômicas no país e diferenças entre raça, classe e gênero.

Além de reafirmar a já conhecida desigualdade entre trabalhadores negros e brancos, entre mulheres negras e homens brancos, o recorte educacional chama muito mais atenção. 

Diferente do que se imagina (e principalmente, do que se acredita hegemonicamente!), a baixa escolaridade não produz maior diferença de renda entre negros e brancos. Enquanto negros com ensino fundamental completo e médio incompleto recebem o equivalente a 82% do que um trabalhador branco com mesma formação, um negro com ensino superior completo recebe apenas 69% do que um trabalhador branco, com mesma formação. Dito de outra forma, a formação profissional, no Brasil, não tem dado conta de combater o racismo e o machismo estrutural em nossa sociedade.

Porque esta disparidade de rendimento só não é pior que a diferença entre os rendimentos de uma trabalhadora negra em relação a um trabalhador branco. Neste recorte, as trabalhadoras negras recebem apenas o equivalente a 44% do rendimento de um trabalhador branco.

Os dados do IBGE mostram o que movimentos feministas negros, mulherismo africana, transfeminismo ou as pesquisas com metodologia interseccional denunciam há muito tempo: políticas de combate à desigualdade socioeconômica, no Brasil, não podem tratar de maneira isolada aspectos como raça, gênero e sexualidade e sua relação na produção de classe. 

A guerra que está em curso no país não é meramente cultural, fundamentada em ações de líderes religiosos neopentecostais. Os dados do IBGE provam que a gerra em curso no país é um genocídio econômico, que vítima homens e mulheres negras, homens e mulheres indígenas, homens e mulheres LGBTQI+, pobres brancos e mulheres brancas, e claro, tudo em nome de um deus.

E se nos causa escândalo as citações literais fascistas em discursos de autoridades nacionais, que nos sirva de alerta para que tenhamos certeza de que QUALQUER POLÍTICA ECONÔMICA OU SOCIAL que venha desse governo será racista, machista, lgbtfóbica, capacitista...

O que parece que a esquerda branca hegemônica ainda não entendeu é que Racismo e Machismo, por exemplo, não são meras estruturas comportamentais ou culturais. Ou, se Racismo e Machismo são culturais é porque são cultivados como políticas que tem garantido o genocídio econômico estrutural no país.

Se a Esquerda Branca (que não se vê como identitária ou Cultural) quer debater economia e desigualdade social, e não perder tempo com pautas morais ou comportamentais ou ainda "identitárias", vamos aos dados ECONÔMICOS: negros ocupam apenas 29% de cargos de chefia, mulheres pretas são apenas 3% das professoras da pós-graduação, o desemprego tem taxa de 11,3%, enquanto entre pessoas negras chega a mais de 15%. E o pior de todos os dados: a diferença de rendimento entre negros e brancos aumenta, proporcionalmente, com aumento da formação profissional.

O que uma parte da esquerda economicista não entende (ou parece que não Deseja entender) é que, se neoliberalismo é fascista, ele sempre foi, a priori, racista e machista (e Isso, esse inconsciente, os líderes neopentecostais já descobriram). Desse modo, não há luta antineoliberalismo ou antifascista possível que não seja antirracista, antimachista ou antilgbtfóbica.

Concordo com a esquerda branca em certo aspecto, com uma condição. Se as declarações diárias racistas e machistas do presidente e de seus ministros e ministras são cortinas de fumaça, que não devem ser fomentadas e naturalizadas com memes e sátiras mal feitas na internet, a ÚNICA forma de serem combatidas é com POLÍTICAS ECONÔMICAS definitivamente ANTIRRACISTA e ANTIMACHISTA, abandonando esse eufemismo da branquitude "Guerra Cultural".