quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Como um cobrador se tornar motorista entre uma oficina de teatro

ou que se produz com (entre) uma oficina de teatro

Em 2010, realizamos uma oficina de teatro junto à E. E. Cornélia Ferreira Ladeira, à época como parte da programação do sucesso do Projeto de Educação Afetivo-Sexual, PEAS, nesta escola. Os encontros se deram no salão paroquial da Igreja de São José Operário, que por coincidência, estava também em construção e fica localizado no ponto final do ônibus urbano que atende o Bairro da Glória, no alto de uma colina que vislumbra uma bela vista.

Demorei um tempo para escrever este texto, pois o acontecimento que é sua motivação atravessou o tempo cronológico do acontecimento da oficina, que se encerrou em outubro de 2010.
Numa das viagens de ônibus ao local, um assunto começou mobilizar o cobrador do ônibus e um outro passageiro. Não lembro exatamente como se deu o assunto específico. Ou o modo com o qual iniciei ou me intrometi na conversa. Apenas me lembro do meio da conversa no meio da viagem. Lembro-me de estar muito quente no dia, talvez fosse final de agosto ou início de setembro. Lembro os óculos escuros, o incômodo com o calor, a bermuda e a blusa leve. Ou talvez esteja inventando agora sem compromisso em oficinar a verdade do dia.

O assunto a mobilizar os três interlocutores era política. Já não sei, porém, se era tratada a política local e uma insatisfação com o prefeito e uma possível dobradinha oportunista entre o irmão Deputado Federal e seu desconhecido irmão e o futuro prefeito municipal. Ou talvez o mensalão e seus réus que possivelmente não cumpririam as suas penas, recorreriam à sentença. Mas àquela época ainda não se pensava em embargos infringentes. Ainda bem, senão a conversa ficaria mais cansativa e apática. Lembro que o tom de desânimo misturado a uma indignação era a tônica do diálogo. Ou se era tudo isso misturado, política nacional com desdobras regional de mesmice e estagnação mundial.

Em certo momento da viagem, acho que quando só estamos eu e cobrador, e já cansado da reclamação, num tom leve e um tanto debochado, largado como deixava aquele calor que afetava meu corpo, provoquei: Você lembra em quem você votou na última eleição? Eu só fico pensando no que estamos fazendo além de reclamar, porque votar é importante, mas cobrar de quem foi eleito também é, talvez até mais importante.
Senti-me satisfeito. Ácido. Pontual. Violento. Despojado. Provocador. Vitorioso. Não me importei se ele iria ler aquela fala apenas como uma critica pessoal. É que chega um tempo em que o conformismo ressentido, essa mesquinharia medíocre, esse desejo de que a vida se torne fácil com a ação deste ou daquele Sujeito (assim com letra maiúscula), apesar da vida insistir coditianamente na sua dureza, me irrita muito! Esse fatalismo que cria inércia e um futuro choroso e desastroso que so-mente a Deus pertence, só serve àqueles que fazem chorar. Aos chorões, lenços às lágrimas e sal para acelerar a desidratação e quem sabe alguma ação.

Eu já tinha dado a conversa por encerrada, porque do jeito que estava a única saída mais lógica era um suicídio coletivo e já que estávamos dentro de um coletivo, achei melhor ficar na minha.
A conversa se tornou outra coisa. Sei que houve um intervalo, que não sei precisar o que tenha acontecido, um intervalo de anos que se dobra no momento deste texto, e alguém entrou no ônibus e a roleta girou, ou um telefone tocou, ou o sacolejo do ônibus propôs uma trégua, ou o calor dilatou tanto que relaxou os músculos e levou novamente a reclamação ao clima e não ao clímax.

Já perto do ponto final, onde era minha parada, ao me preparar para passar pela roleta, o cobrador ou trocador (depende da região deste meu país) me dirigiu a palavra, com o balanço da cabeça e dos ombros em tom de consentimento como se estivesse encontrado alguma coisa que há muito procurava. E disparou: – Cara, você me fez pensar uma coisa, e é mesmo. O que tenho ajudado a fazer? (Poderia ter sido a famosa frase de um texto conhecido, que gosto muito do Luiz Orlandi – O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?) Mas a leitura do texto não chegou nem perto da alegria da vitalidade da questão inventando uma outra possibilidade de vida no ônibus.

O que mais me surpreendeu foi o que veio a diante: – Eu vou fazer o curso para motorista e você vai ver, quando eu passar, vou buzinar para você! E dizer, lembra de mim?
Caro leitor, passado quase três anos, o que você acha que aconteceu? Eu não poderia me esquecer.

O texto poderia ser encerrado assim, com a alegria do encontro e talvez com certo ar de dever cumprido ou recompensado por me sentir responsável por uma mudança tão significativa ou afirmando um certo poder de Sujeito de se transformar através de outro Sujeito. Porém, o poder do encontro de destruir qualquer Sujeito. Na diferença disso, produzi este texto tentando pensar em tudo o que não disse para aquele cobrador, que nem sei o nome, decidir tomar aquela decisão. Ou isso serviria como estímulo para dizer: quando se quer alguma coisa, faça, ta vendo este cobrador-motorista... Porém, o que me põe a pensar é que em momento nenhum o desejo era transformar cobrador em motorista, era fazer oficina de teatro, entrar, para isso, no ônibus e não deixar de falar aquilo que desejava, muitas vezes parecendo chato e otimista demasiado. Continuo a pensar: quando achei que provocava, era também provocado. Penso em tudo que não disse para que o caminho fosse aquele. Muita coisa acontece entre uma oficina de teatro. Ao cobrador que se tornou motorista, minha admiração plena na afirmação de uma vida sempre possível.

Por hora, sigo com minhas práticas, na ignorância de seus efeitos, refém das causas em mim, e sem controle nenhum em causar em outros. Mas compreendo que muitas coisas são provocadas entre caminhos e vivo pensando que não é importante a partida ou a chegada, mas de fato como se faz o caminho.
E o cobrador em devir motorista da vida continua a me fazer pensar e pensar e e e...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

obrigação de ser professor! (ecos de um grupo em Formação)

O maior desafio da escola não é captar os desarranjos que não são meras subversões ou vontade de transgredir. Toda regra terá sua exceção, já diz o velho jargão. O maior desafio da escola é lidar com desejos, desejo de fazer outras coisas, desejo de fazer nada quando se está fazendo alguma coisa. E desejo não tem a ver com obrigações, inclusive, nem com aprender!

A obrigação é coisa que provoca mortes na escola, até mesmo o mais singelo e despretensioso desenho livre... Tem dias que se quer fazer outras coisas além de desenhar na aula de desenho. Ops!!! E isso seria possível?

Difícil a tarefa de lidar com a obrigação de aprender se nem sabemos como aprendemos e não temos nem a forma, nem a fôrma.

É difícil para todo professor aceitar que, sim, nem todos alunos vão achar as coisas que se diz interessante, mesmo sendo as mais coloridas, as mais diferentes, as mais alegres, as mais mais. Não adianta truques e malabares. O negócio não é entre sujeitos e objetos ou o problema não está entre o Professor e o Aluno, nem tampouco na Aula, mas na relação que não começa na escola nem termina nela, vaza e, dela, pouco se sabe, só se pode apostar, como num lance de dados.

Acho engraçado alguém se espantar com um aluno que não gosta das aulas de arte ou aceitar facilmente que outro não goste das aulas de matemática. A maior dificuldade que enfrenta um professor é a obrigação: de ensinar, de aprender e de saber tudo o que faz; de falar, de opinar, de reprovar ou aprovar. Quem disse que o professor é qualificado para aprovar ou desaprovar alguém? E se o aluno souber mais que o professor, com certeza se entediará e não fará nada ou o contrário, se o aluno não souber nada mesmo, e cansado do discurso que não se sabe nada, se entendiará de não saber nada e continuará sem saber nada. Por isso, não é uma questão simples de avaliação de causa e efeito, porque o efeito pode ter muitas causas ou ter causas sem efeito nenhum.

Nós, professores, por mais descolados que sejamos, nos sentimos obrigados a fazer alguma coisa, a dizer alguma coisa, quando também é importante não fazer alguma coisa, não dizer muitas coisas, mas ouvir e nada fazer.

E isso não quer dizer ouvir o aluno, porque o aluno também aprendeu a ficar calado. Daí, um dos maiores desafios que se tem em sala de aula é ouvir o silêncio que se produz nos entre's as falações, regras e convenções educacionais. E não fazer nada daquilo que se esperava pedagogicamente correto ou sistematizado pelo sistema de ensino que está mais preocupado em transferir informações para resolver problemas previamente estudados pelo mercado de trabalho é tarefa complicada.

Sigo apostando nesta difícil tarefa. Por hora, escrevendo um pouco.