terça-feira, 27 de março de 2012

Que pode a arte na Academia?

Arte (marca) performance palavra academia cria pensamentocomocorpointeiro corpoalíngua: Viva!
Marcas “são estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das composições que vamos vivendo (...) são sempre gênese de um devir.” (ROLNIK, 1993 p. 2) São acontecimentos que vão além de um desejo controlador do sujeito, que o retira de seu lugar cômodo e o conduz a outras terras, “não é ele (sujeito) quem conduz, mas sim as marcas.” (ibidem, p.3).  São encontros que não permitem continuar o traçado antes imaginado. As marcas conduzem a novos cominhos fora do roteiro de início. E podem ser re-ativadas, são acontecimentos sem fim. Do encontro, reativa outra marca que já se torna outra.  A marca feita pelO abecedário Deleuze e o seu P de Professor. Neste encontro, Deleuze relata que a aula, apesar de ser breve, é fruto de uma longa preparação. Diz que fazia poucas ou nenhuma pausa para intervenção dos alunos, acreditava que inquietações importantes só se produziam, de fato, após uma semana do encontro. Por isso não considerava muito as interrupções e desacordos momentâneos dos alunos. Talvez precise ainda de anos para certas inquietações, já outras, exigem ser movimentadas, as marcas gritam.
Fazem voz algumas marcas dessa confusão em mim e algo se produz um pouco inteligível.  Este texto tenta usar a inteligência não a serviço de um movimento puramente intelectual, mas usá-la “a serviço de uma escultura do tempo, a serviço de um devir-outro.” (ibidem, p. 6) Esculpir por um breve momento com palavras o tempo. “Escrever é esculpir com palavras a matéria-prima do tempo, onde não há separação entre a matéria-prima e a escultura, pois o tempo não existe senão esculpido em um corpo, que neste caso é o da escritura, e o que se escreve não existe senão como verdade do tempo.” (Ibidem, p. 9) Mesmo que efêmero, pois meu compromisso não é parar no tempo, nem parar o tempo, mas atravessar e minar todo o território, aproximando toda segmentação que se achava possível. Constituir-se não como um corpo com ideia que fala através de um texto, mas um corpoideiafalatexto. Corpos Informáticos, violentado por suas marcas diz que “A arte é pensamento, mas pensamentocomocorpointeiro, descoberta a cada resto e a cada novo re-sentir a criação.” (MEDEIROS, 2011, p.26). A ideia como corpo. A fala, singular, única, como única expressão possível sem compromisso com uma linguagem vigente, mas criadora de outro estado de expressão, inteligível texto, no qual a distinção entre corpo, ideia, fala e texto já não existe.
 “Só se pensa porque se é forçado”, violentado, marca Rolnik. Os Corpos violentados, marcados pela/na academia pensa arte. A arte não como coisa, objeto posto em museu, obra de arte de galeria, produto vendável em leilão conceitual, mas ‘comocorpointeiro’. Modo de pensar. Podemos, por um breve momento, pegar de assalto a designação do movimento nascido no início do século XX para fazer inteligível o pensar arte ‘comocorpointeiro’. Fruto dos ismos – Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, Cubismo – a Performance art ou Arte da Performance é marcada pelo abandono ao objeto e/ou obra prima artística, propõe abertura à experiência não reproduzível, criadora do novo, para isso, recorro a RoseLee GOLDBERG:
O desdém para com o objeto de arte estava associado ao fato de ser visto como mero fantoche no mercado de arte: se a função do objeto de arte devia ser econômica prosseguia o argumento, então a obra conceitual não podia ter esse uso. Embora as necessidades econômicas tenham dado vida breve a esse sonho, a performance – nesse contexto – tornou-se uma extensão de tal ideia, apesar de visível, era intangível, não deixava rastros nem podia ser comprada e vendida (2006, p. 142).
Além de demarcar uma distância do mercado de arte, a Arte da Performance buscava fundamentar-se na experiência, no processo, não na produção de um objeto ou obra, produto finalizado de arte. A arte não monumento, não obra, não objeto. Desse modo, propõe outra relação com o espaço, tornando-o determinante, porque
“o lugar em que a obra acontece, esse grande objeto, é parte do efeito, e, em geral, pode-se vê-lo como o primeiro e mais importante fator a determinar os acontecimentos (o segundo eram os materiais disponíveis e o terceiro, os atores).” (OLDENBURG apud GOLDBERG, p. 124).
Desse modo, determinada pelo espaço, a performance impossibilitava seu deslocamento como objeto de arte. Diferente do teatro tradicional que reproduz um espaço conveniente à ação – cenários – a performance produzia-se a conveniência do/no espaço. Muda-se de espaço, muda-se a performance.
A atenção ao espaço no qual a experiência se dá torna-se fator determinante para o acontecimento artístico. Isso nos interessa: Pensar arte na academia.  Informamo-nos com os Corpos Informáticos, que violenta, procurando outro fazer artístico na/da academia, abandonando a já capturada Arte da Performance, que diferente da preocupação de Goldberg, e que tem dado vida longa de mais ao acontecimento performático. 
“Com a performance tornando-se tema de exposições (Marina Abramovic no MOMA, e 100 years: a history of performance art no PS1 em Nova York simultaneamente) e se tornando institucionalizada, sua efemeridade se submete a consagração.” (AQUINO; MEDEIROS, 2011, p. 195).
E marcados, forçados a pensar, a criar, fazendo arte, os Corpos continuam: “É necessário pensar novas infiltrações: não mais diremos que nossas performances são efêmeras, diremos que são vagabundas, deslizam vadias entre os vãos absorventes.” (Idem) São fuleiras. Sem preço, sem objeto, mas produção do novo.
Pensamento outro violento de performance que contamina o texto vem do grito do corpoalíngua de Clarissa ALCANTARA:
Performance. Nada a dizer. É que alguns corpos não aguentam mais esses lugares demarcadores de linguagens, enunciados forçados enterrando palavras de ordem feito estacas, lugares que estriam sobre o corpo esteticismos éticos, reduzem suas forças, alienam seus possíveis, castram-no, assopram o buraco da ferida e distribuem pasto comprado para se comer. Há corpos famintos das areias do deserto, há corpos brilhantes, grãos indiscerníveis, que, em se tratando dessa ética, também não querem saber nada disso, mas justo porque não se encontram atados a ninguém. (2011, p.11-12)
Romper com o já conhecido, já instituído. A performance mina, pulveriza, ventila, areja, alveja, faz brilhar, contaminando outros territórios da arte, da vida. O corpoalíngua é fuleiragem, porque busca outras infiltrações para arte da performance, não busca a consagração, mas provocação, provoca ação, mina a linguagem da performance, e contamina-se dela, e contamina a arte, fazendo da performance coisa outra.  A performance corpoalígua não domina a linguagem, não quer nada, porque já é só desejo. “Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, só pode ser na realidade, e de realidade” (DELEUZE; GUATTARI apud idem). O desejo não busca ideal, não projeta imagens no futuro, não espera resultados, só vive. Só deseja. Só deseja o real e constrói realidade. É um corpo que produz com outros, e torna-se corpo outro. Que sabe dizer sim, mas diz palavras que não institui ou demarcam linguagens porque é singular, expressão única, em dado momento da escritura do tempo de Clarissa, no espaço acadêmico da literatura contaminada pelas filosofias da diferença. “Contágio. A peste tem a força de uma revolução molecular. Toca-se e se é tocado sem a precisão de um saber seguro sobre o que se deixa tocar e o que toca no mais longínquo.” (ibidem, p. 14). E segue contaminando-se e contagiando outros tantos territórios, que se espalha em N3Ps, em Cia. Teatral Ueinzz. É só língua sem linguagem. É coisa que se constitui pelo espaço no breve tempo do acontecimento infindável. É marca que produz outras marcas; marca, demarca, des-marca, e marca. Sem opor uma marca a outra, mas sempre composição de marcas que gera outra, gêneses de um devir.
Corpoalíngua. Na invenção deste conceito a palavra-valise se desobriga de suas funções lingüísticas e foge da ordem dos enunciados supostos em sua estrutura de logos. Já são várias e carregam vários sentidos. Por ocupar espaço rarefeito, ela mesma é desestrutura, “forma lacunar retalhada”. Desmanchando de outra valise – corpoemaprocesso, contraindo, por roubo, outra, alíngua – o conceito criado de corpoalíngua permanece nômade, sem resistência, sem território fixo, numa resistente inconstância a-significante(...) (ibidem, p. 10-11)
Corpoalíngua vaga por territórios deslizantes: corpoemaprocesso – pesquisa vinda da Literatura; Lalangue ou alíngua de Lacan, tudo fundido, fudido, em constante performance sem objeto e sem valor, fuleiragem. O que não permite sua limitação, mas abre às multiplicidades de todo conceito. É corpo sem linguagem. Que gagueja. É corpo que se faz língua, coisa única, impar. Não é sem língua, é a (artigo)+língua. Singular. Corpoalíngua. Arte de falar.
Corpoalíngua é arte. É pensamentocomocorpointeiro que produz novo. Pensamentocomocorpointeiro é corpoalíngua. É arte. Na diferença. É arte na/da academia.
“A arte trata, maltrata e trai a técnica ou a tecnologia”. (MEDEIROS, 2011, p.16). Corpos Informáticos e Corpoalíngua trata, maltrata e trai a técnica ou a tecnologia da academia, da linguagem acadêmica. É aglutinação de palavras, hífens intermináveis, palavras desmembradas, neologismos que só são inteligíveis, dado aquele contexto único. Efêmero. Isso. Por isso é corpoalíngua, não linguagem. Requer esforço para deixar com que as marcas conduzam a um território gramaticalmente novo, abandonando todo mundo de significado. Difícil tarefa para um território acostumado, legitimado por uma significativa tradição baseada na possibilidade da clássica linguagem. “O ser humano se constitui pela linguagem. É pela linguagem que ele se torna sujeito e membro de um grupo social.” (ibidem, p. 30) No entanto, quando a linguagem, continuam os Corpos, “torna-se objeto de conhecimento, deixa de ser espaço aberto ao sensível e se abole como ‘força de fascinação’” (Idem, p. 31) Por isso arte na academia: para o novo. Por isso língua, não linguagem. Para Corpos brilhantes, famintos da areia do deserto, que não estão atados a ninguém, só a outros corpos indiscerníveis. Um corpo. Corpo outro. Outro. Mas não é a análise da arte, de obras, de uma técnica de produção artística ou metáfora a respeito da criação que fazem pensamentocomocorpointeiro. Nem uma metodologia da arte. É diferença.
Claudia Meireles compartilha sua experiência, fruto do trabalho que realizou nas ruas. Em uma travessia de pedestres, controlada por semáforos, decide movimentar-se perpendicular ao fluxo de movimentação das pessoas, realizando o movimento paralelo ao dos carros.  Desse modo, provoca os transeuntes. Escuta observações como “ela está louca”, “Prende ela seu guarda”. Assim, apresentava-se num fluxo de movimentação diverso ao da massa que atravessava a avenida, desejando, o mais rápido possível, alcançar, sem muitos obstáculos, o outro lado. O que fazer quando há alguém a sua frente, num movimento, fora de sua lógica de comportamento? Achá-lo louco é o mais lógico.
Para fazer-se entender, a professora, tenta então, transformar aquela ação em uma metáfora – meta para fora daquilo que é – dizendo, “é como se fosse você, Platão, diante de Deleuze”. Mas a questão é muito mais violenta, mais viva. Não é como se fosse, é. É Platão cruzado por Deleuze. Não é metáfora, mete dentro. Deleuze não foi para fora, mas foi tão dentro que vazou. Não é arte a serviço de um entendimento simbólico. É arte que produz real. “A arte é por si e em si, ela se basta.” (MEDEIROS, 2011, p.20). O artista com seu desenho não queria dizer isso, ele diz. Um texto, um discurso, uma fala que não seja a própria obra não é arte, é interpretação. É tomar o objeto artístico como desprovido de linguagem, o que seria até interessante, mas neste momento do pensamento, limita e tenta produzir teoria. Esta linguagem que esvazia a potência artística, criando impressionismo, surrealismo, achismos. “A teoria sobre arte pode ser entendida como pós-arte? A teoria não diz a arte: quando fala, não é mais a arte que fala.” (ibidem, p. 16). A linguagem é a mordaça da arte ou da obra, e tentar dar voz, categorizar surrealmente – para além do real – algo que se constrói na realidade, é desnecessário diante do que é necessário amar. O que não quer dizer que a partir da arte não se possa dizer outras coisas, mas quando se diz dela, já não é ela, a arte, quem diz, mas sua potência criativa que produz marcas que gritam pelo novo. Transforma arte em símbolo é desacreditar na sua capacidade de criação.
O simbólico, de fato, é o impossível, e não o real, dizem Deleuze e Guattari. O real se produz em toda parte. No real tudo se torna possível. O simbólico se forja a partir de territórios, forças contornos, circunda espaços, molda, domina, marca inevitavelmente um lugar, uma posição impossível de existir sem que dela se diga, nas infinitas circularidades do nome, o que é. Se não diz, se aparece aí um buraco, tem-se o imaginário para cobrir, e se este se assombra, corre-se de novo à estrutura. (ALCANTARA, 2011, p.38)
Por isso performance sem obra definitiva. Por isso fuleiragem sem valor de venda. Por isso pensamentocomocorpointeiro. Por isso corpoalíngua sem linguagem. Por isso arte. Por isso arte da/na academia. As marcas conduziram e continuam a conduzir. Performance, corpoalíngua produzem-se da arte como pensamento, pensamentocomocorpointeiro. Um corpo cansado de ser conduzido por um mundo simbólico, que nega realidades outras. Um corpo que deseja arte. “A questão aqui é o desejo produzido em usina, irredutível a uma estrutura orgânica simbólica e imaginária do sujeito.” (idem) É coisa que surge em outra lógica, em consciência outra, como a vontade inconsciente de transitar em fluxo perpendicular ao que é posto, ao que é pasto pra se comer, ao que é imposto ao imaginário acadêmico. “O inconsciente é maquínico, não imagina, não simboliza nem figura; é ele o Real e a sua produção.” (idem) São as marcas que conduzem, que não simbolizam, mas produzem realidades.  Urgências. Vida. Que desejam, marcas como usinas de desejo. Urgência de vida. “A arte traz o real à tona, desnuda e torna translúcida a carne do corpo de um mundo, escancara as relações sociais, econômicas e políticas sem instituir sistema: proposta. A arte vai buscando escapar a dissecação da linguagem.” (MEDEIROS, 2011, p. 31). Pensamentocomocorpointeiro ou corpoalíngua não são linguagem nem demarcação de território, se o for, é por breve tempo, é nômade. Não é receita, técnica ou metodologia. É, sobretudo, um “modo como se faz sua prática enquanto pensador” (ROLNIK, p. 12) de arte na academia que escapa a dissecação da linguagem 'academiscista'.
Quem pode dizer que isso é um objeto de arte? Tudo pode ser arte, e, se assim for, não necessitará de outra linguagem, senão de sua própria língua para existir. Adeus críticos de arte. A Deus!
 Porque se a performance surgida como alternativa ao mercado, que propunha o abandono ao objeto de arte e ao espaço institucional, hoje já se tornou linguagem, este texto se faz falando da arte enquanto criação, que não é técnica, senão, como técnica para trair a técnica. Arte como comunicação, como marca que conduz e produz desejo do/no real, não no imaginário e simbólico. Isso sim. “Arte é comunicação não-linguística, voz do corpo e cor do grito. Trata-se de criar um outro do discurso, a ordem do grito. Grito do ser humano, Significações incertas. A indeterminação é desejada: obra aberta. Esse grito não diz nada.” (MEDEIROS, 2011, p.34). Interessa não um saber “mas um aprender, um criar”. É criar um outro do discurso da arte. Um outro do discurso acadêmico. O exercício do pensamento, da pesquisa como arte. Não aquele pensamento que se costuma demarcar como território para arte, com uma “estetização fetichizadora, folclorização romântica, alucinação militante.” (ROLNIK, Quarar Almas, p.8) Como coisa bela, equilibrada, que traz alegria, prazer em entreter e se identificar com seu público. Pelo contrário, arte como marca, como violência, “que dissolve a cegueira do hábito”, marcada após ter a alma quarada. É movimento inconsciente, não-linguistico, sem linguagem, sem querer, mas fruto do desejo de expressão, do não-saber fazer de outra forma, de não aguentar mais esses lugares demarcadores de linguagens. Vislumbra horizontes inatingíveis, mas, como e com os Corpos Informáticos, prossegue esboçando possibilidades composicionais fugidias, pois, vivas.
Criação não-linguística. Arte. Produção de desejo de real na realidade acadêmica, fruto de muitas marcas violentas, contágios impossíveis de serem evitados. Assim, faz-se arte, assim faz-se Corpos Informáticos no centro do Brasil, deixando ver, com suas performances, seu corpoalíngua. O pensamentocomocorpointeiro acaba por produzir um corpoalíngua desejoso, brilhante em Casa Branca, nômade que transita pelo sul do país, São Paulo, Ouro Preto, Belo Horizonte. Faz do corpo língua, abandonado de todo seu ego, num movimento inconsciente de marcas que gritam pelo novo. Que criam novo. Ainda bem que a vida está em obra, ainda bem que a academia pode ser obra de arte.


Produção a partir das marcas do encontro entre arte, Corpo Informáticos, Corpoalíngua, Corpo-pensamento, Educação - PPGE - UFJF - 23/03/2012.

Bibliografia:

Abecedário Deleuze. P de Professor (Parte 3). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=hQ6f0KClnc8. Acessado em 10/05/2011.

ALCANTARA, Clarissa de Carvalho. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2011.

GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MEDEIROS, Beatriz de. Pesquisa em arte, linguagem da arte ou Como escrever sobre o pensamentocomocorpointeiro. In.: AQUINO, Fernando; ______. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade PUC-SP. São Paulo, 1993. Texto transcrito pelo Grupo do Laboratório Ser Terapeuta – Movimento 1, em abril de 2008.

ROLNIK, Suely. Quarar a alma. S/D. Link para acesso digital pela página da autora: http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/quarar_a_alma.pdf

segunda-feira, 19 de março de 2012

Apresentação: malhar com arte trai a academia



Eu sou, no mínimo, o homem mais terrível que até agora existiu; o que não impede que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço o prazer de destruir em um grau conforme à minha força para destruir – em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer Não. Eu sou o primeiro imoralista: e com isso sou o destruidor par excellence.
Ecce Homo - Nietzsche
Provocado.
Apresentação. Não sou mestrando; não sou doutorando. Não sou professor, estava professor de Arte, porque não sou licenciado. Sou reprovado por 5 programas distintos de Pós-Graduação. Ainda não me cabe a academia com seus halteres pesados. Não trabalho. Desempregado? Nunca fui empregado, pregado. Não sou ator, nem sei se posso interpretar além de um eu tão fugidio e obsoleto.
Como alguém se torna professor? E de Arte?
Chamava-me performer, mas agora, muito americanizado, estadunidense de mais; sou mais fulero que isso, Corpos Informáticos[1] são.


foto: Magno Mattos
“Eu to botando dúvida
Eu to botando defeito
Eu to prestando pra nada
To ficando obsoleto de mim
Ficando absolutamente não afim
(...)
Eu fico frio de medo
Eu fico cheio de dedo
Eu to prestando pra nada
To querendo me livrar de mim
Eu fico transparentemente não afim.”[2]


MPB. Música pra boi dormir. To aqui sambando a música da existência no desejo de estar, tentando me livrar do obsoleto de mim, fazer do encontro da malhação outra tonicidade. O que me resta é seguir algumas pistas. Primeira pista: arte.
Mas não só da arte linguagem, forma técnica, dança, teatro, arte cênica, plástica, visual, mas é que
“A faceta prática da arte é da mesma natureza que dirigir com arte, cozinhar com arte, pintar com arte. No momento da criação, da realização, da volução, os atos desses artistas dar-se-ão sem pensar os passos, a cada passo.” (AQUINO; MEDEIROS, 2011, p. 16).


Desse modo, buscando abandonar as dicotomias pensamento/ação, razão/emoção, teoria/prática, investir na relação, no sexo, na penetração, no emaranhado, rodando sem objetivo, sem manter um movimento apenas, na volúpia. Tudo num tempo único. A arte não como produção de objeto, coisa posta em museu, galeria, produto vendável, vendido na liquidação leiloeira de conceitos. Corpos Informáticos brasilienses do Brasil do mundo faz cutuque, dá outra pista: “A arte trata, maltrata, trai a técnica ou a tecnologia.”(Idem.)Ui!


Eterno retorno à academia da forma, busca por forma outra. Malhar, malhar, malhar: repetição que gera diferença, território transitório e potente, criação, que não se opõe a identidade, mas perfura-a artisticamente, des-dobra-a em identidade nômade. “A arte como pensamento, mas pensamentocomocoporinteiro, descoberta a cada resto e a cada novo re-sentir a criação.”(ibidem, p. 26) O que interessa é o pensamento outro da arte, que se faz ‘comocorpointeiro’. A vida como obra de arte, única, não reproduzível, instante que passa, mas fica. Acontecimento sem fim. Academia como obra de arte. Possível? Informo-me.
Vem a necessidade de falar, falar, falar.


“O candidato não apresentou, no texto da prova, conhecimento e capacidade crítica sobre o tema proposto. O discurso é vago, inconsistente e não atende aos requisitos de clareza, coezão e coerência.”[3]


A técnica de criação humana acadêmica trai a técnica do Word gramatical. Ou a técnica do Word gramatical trai a técnica de criação humana acadêmica. Ual! O que me resta neste momento é isso, constituição de mim, transparentemente, falar, na busca de coerência, coesão ou, com “z” zão, clareZa: e “O verbo se fez carne”, corpo, um corpo, sem posse, sem dono, de todos, mas de ninguém, “Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu... É sempre um corpo.”(DELEUZE, 1995-1997, p.28) Com janela, caneta, vozes no corredor, Fabrício, Cristian, Zilpa, Margareth, Éricas, Tarcísio, Marco’us, Sônia, Nina... Lillian... um corpo de estudos, num corpo da Educação, num corpo UFJF, num corpo. Outro.


E esse corpo fala? Como fala. Como falar? Línguas, sem linguagem, língua outra, La langue, alíngua corpoalíngua[4]. Eis o desafio acadêmico da arte. “A arte é comunicação não-linguística, voz do corpo e cor do grito. Trata-se de criar um outro do discurso, a ordem do grito. Grito do ser humano. Significações incertas. A indeterminação é desejada: obra aberta. Esse grito não diz nada.” (AQUINO; MEDEIROS, idem, p.34) Corpos Informáticos diz. Grita. O que ainda não foi dito? Que? Gritar!


Não importa, a mim, clarear nada, “não afim”. Sem luzes. Se a mim interessa o clarão que seja da ordem da cegueira leitosa, cegueira branca sarama-guia-na, que mais turva que deixa ver, que aciona outros sentidos além do costumeiro ver.


Medos. Demasiado. Da morte não, pois já disse Cazuza, “morrer não dói”; mas alerta Guimarães, “Viver é perigoso!”. Sertão ou metrópole. Sertão de metrópole. Seca acadêmica, e ainda assim, criar vida. Temo viver, depois de des-crer na imortalidade da alma e ter certo o findar biológico. “E a vida! E a vida o que é? Diga lá, meu irmão”[5] Quando, como, por quê? Que venha a morte, pois esta vida é muito incerta e também deslumbrante. Ai! Paradoxo. Aqui estou. Tornando-me.


Arte pra maltratar, tratar e trair a técnica, a tecnologia acadêmica, a técnica gramatical do Word, da palavra acadêmica. Endêmica. Buscar linguagem outra, que seja mais que comunicação, que seja expressão do novo, não da novidade. Coesão com “z” é a traição da técnica que cria língua, sem linguagem, expressão. Não quero nada além da experiência, ao que escapa à correção gramatical programada e que se faz entender, sem ser tendencioso, mas tencionando sempre, mesmo dentro da academia.  Formação de professor sem técnica, sem licença. Técnica outra, licença outra. Com licença poética, de criação. Arte. Pensamentocomocorpointeiro. Formação outra. Eis o desafio.


Torço para que um dia eu possa dizer: Eu sou nada! E nada seja falta, mas possibilidade, potência de tudo, apenas vida!




Referências bibliográficas:


DELEUZE, Gilles. Como criar para si um corpo sem órgãos. In.:______. e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34.
MEDEIROS, Beatriz de. Pesquisa em arte, linguagem da arte ou Omo escrever sobre o pensamentocomocorpointeiro. In.: AQUINO, Fernando; ______. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.



[1] Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, criado em 1992, no Programa de Pós-graduação em Arte – UnB.
[2] Altos e baixos. Música. Interpretação Roberta Sá. Disponível em http://robertasa.com.br/site/discografia/?mith&categoria=albuns&pasta=1. Acessado em 17/03/2012.
[3] Parecer final da banca, na integra, em resposta ao recurso da 2ª fase Seleção 2012 – PPGE – UFJF, grifo meu.
[4] Ver mais em ALCANTARA, Clarissa de Carvalho. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2011.
[5] Trecho da música “O que é, o que é?”. Gonzaguinha. Disponível em http://letras.terra.com.br/gonzaguinha/463845/ Acessado em 17/03/2012.




produção partindo das provocações do primeiro encontro do Grupo Corpo-pensamento e Educação, PPGE - UFJF, 16/03/2012.