quinta-feira, 12 de junho de 2014

Não somos científicos. Fazemos vida. Que fazemos, então?


Uma discussão toma conta do virtual facebook e invade o ambiente acadêmico: a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão federal brasileiro financiador de pesquisas acadêmicas ditas científicas, em resposta ao Edital Procad 071/2013. deu parecer contrário ao projeto que envolve pesquisadores da UnB, UERJ e UFRN com 19 docentes, 09 doutorandos/as, 15 mestrandos/as e 27 graduados/as, intitulado “Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos e as políticas sociais”, por considerar que o método histórico-dialético “não garante os requisitos necessários para que se alcance os objetivos do método científico" e "cuja contribuição à ciência brasileira parece duvidosa".

Os mais assustados indicam de pronto que há um patrulhamento ideológico nunca visto antes, um super conservadorismo que vem tomando conta do Brasil, os prognósticos são os piores. Exemplo disso seria a denuncia de um ritual satânico e abuso sexual que teria ocorrido durante uma festa de encerramento de um evento acadêmico no campus da UFF em Rio das Ostras – RJ, no qual uma garota teria costurado a vagina. Quando ouvi o caso, logo reconheci e sentenciei: performance artística. Juntam-se a essa, denúncias os inúmeros modos de repressão de movimentos sociais e grevista no Brasil inteiro, que vai de prisões que buscam intimidação, ameaça de corte de ponto e demissões, como acontece com os professores do Estado de Minas Gerais; inclusive disputas judiciais que discutem legalidade do ato grevista. É até engraçado, o Estado determinando se é legítimo alguém fazer greve contra o próprio Estado. Seria possível uma sentença contrária ao Estado? Difícil.

Mas o método científico explicaria todo este caos? Ou melhor, seria capaz de explicar e se tornar o juízo de tudo, ora se transfigurando em CAPES, homem vestido de toga ou ocupante da cadeira do legislativo? Desconfio da eficácia do método científico e não tenho dúvidas a respeito de seus objetivos. Afinal, que Ciência? Tradicionalmente o método cientifico é descritivo, ele observa os acontecimentos até seu fim, antes disso, não tem mais nada a fazer, a não ser destilar hipóteses e mais hipóteses hipnotizantes. Ele precisa ver o Todo e espera por um acabamento, pelo fim do processo. Possui uma hipótese teórica que deve ser comprovada empiricamente, na prática, para confirmar ou invalidar a hipótese. Geralmente contesta uma tese reconhecida como verdadeira. Os resultados diferentes da tese contestada formam uma antítese e a observação atenta ao que se mantém e ao que se torna diferente forma uma síntese, que posteriormente defendida e comprovada racionalmente perante a comunidade científica, torna-se uma tese pronta para ser contestada a qualquer momento. 

A posição do cientista, neste caso, é considerada neutra, puramente racional sem se deixar tomar por qualquer julgamento que não seja comprovadamente demonstrável. Uma boa e eficiente pesquisa científica é aquela capaz de ser reproduzida em qualquer lugar, por qualquer cientista competente, observando, no entanto, que é preciso um ambiente ideal para que não influencie no experimento. Em pesquisa, por exemplo, das ciências biomédicas há os chamados grupos de controle estatístico. Para ser testada uma nova droga ou vacina, os indivíduos são divididos em igual número em dois grupos, um receberá a novidade e outro não. Isto para observar um tal efeito placebo daqueles que se sentem melhor sem receber nada em troca, apenas a notícia de que algo está mudando, puro efeito psicológico. Seria este o nosso problema, sofreríamos dos efeitos placebos?


Outro dado interessante, pois toda pesquisa científica deve apresentar com clareza seus dados e suas oposições, fora que ano passado, em novembro de 2013, exatamente, o colunista da Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé acusava, com texto com título bem sugestivo “Eu acuso” os cursos das ditas Ciências Humanas e Sociais brasileiros e consequentemente, professores dessas áreas do Ensino Médio, de “bullying ideológico” que obriga “jovens a 'fingirem' que são marxistas para não terem resultados ruins” em seus exames de avaliação. Continuava fazendo um prognóstico tenebroso, agora acusando o que ele chamou de esquerda como a grande vilã: “Estamos entrando num período de trevas. Nos partidos políticos, a seita tomou o espectro ideológico na sua quase totalidade. Só há partidos de esquerda, centro-esquerda, esquerda corrupta (o que é normalíssimo) e do 'pântano'. Não há outra opção”. Conclusão, todo mundo com medo e como diria um ditado popular “o cachorro com medo do próprio rabo”.

Desde o surgimento dessa nomenclatura Ciência Humanas, posteriormente, o desejo de se diferenciar ainda mais em Ciências Políticas, Ciências Sociais, já ouvi falar até de uma Ciência da Arte – isso sim é de causar pavor! – há uma necessidade de afirmar o valor cientifico de tais áreas, muito vezes obrigando-as a se adaptarem ou a se adequarem com termos análogos às cientificidades. Atualmente, aqui na Universidade na qual realizo minhas pesquisas, há um movimento por parte dos cursos humanos em negar a submissão de seus projetos ao Conselho de Ética da instituição formado e regrado hegemonicamente por pesquisadores das ditas Ciências Exatas e Biomédicas, pouquíssimos Humanas. A respeito desta discussão há um belo texto de Hannah Arendt "Entre o passado e o futuro" que discute com tamanha genialidade a questão da História para se firmar como Ciência, entre outras tantas coisas.

Não saberia definir cientificamente o tal método histórico-dialético, mas me lembro de uma disciplina de pesquisa cursada na pós-graduação em Educação orientada por um professor conhecido como marxista. Penso que poderia ter feito outra coisa ao invés da disciplina obrigatória, que não fora uma determinação ditatorial do professor, diga-se de passagem. No entanto, dada a simpatia do sotaque, a responsabilidade e a teatralidade, a aula se tornou, em certo ponto, divertida e produtiva, com algumas boas histórias para contar. Lembro-me de que ele falava muito contra um modo positivista que domina as Ciências da Natureza. Atacava esse mito da neutralidade da investigação, dizia sempre que qualquer decisão científica tinha seu teor ideológico. O que diria, hoje, um médico a respeito do consumo do ovo para um dono de granja, que anos a fio, viu seu produto ser vilão da dieta? “Agora pode, cientificamente controverso.” Atentava também para um relativismo, no qual tudo seria possível, contudo que fosse explicado de modo racionalmente entendido e que, por isso, não havia apenas uma História, mas fatos históricos prontos para serem interpretados para se inventar outros tantos sentidos. Apostava na História como um contínuo que se sucedia desde a pré-história, se movimentando através de Revoluções e que olhando o passado, seria possível perceber ou prever alguns movimentos futuros, como ascensão e declínio de classes sociais. Sempre lembrando que a produção e o poder econômico eram determinantes.

Lembrei-me agora do artista Flávio de Carvalho que na década de 20 do século passado trajou uma sai numa rua paulistana movimentada. Ou quando calçou chapéu e seguiu na direção contrária a uma procissão católica, quase fora linchado. Risco ao questionar padrões e modelos hegemônicos, como a “Xereca Satanik” que serviu para saber que os índices de estupro a mulheres na cidade de Rio das Ostras – RJ vem aumentando neste ano ao invés de anular ou diminuir. Ou como o performer sul-africano Steven Cohen que amarrara um fio ao seu pênis e a um galo e que fora condenado pela Justiça Francesa por “exibicionismo sexual” ao contestar as proibições do país que por vezes achamos sinônimo de "Liberté, Egalité, Fraternité", "Estou mostrando a minha parte mais íntima, dizendo: sou homem, judeu, gay, branco", declarou Cohen.

O que me parece quando leio algum trabalho guiado pelo método histórico-dialético é que a tensão sempre existiu e sempre existe porque existe vida e a vida não ama os covardes, me apropriando de Vinícius de Moraes. O que há são forças em guerra, apesar da análise histórico-dialética, por vezes, se guiar pela interpretação e pela representação ao invés de dar vazão a elas. Este pensamento científico de superação, neutralidade e racionalidade empírica nem sempre funciona, como nem sempre funciona no laboratório. Ao que parece, já nem seria necessário ou nem seria um exercício interessante dizer que o método dito marxista seria científico, pois ele problematiza o próprio parâmetro de cientificidade. Como poderia convencer meu amigo formado no IME - Instituto Militar de Engenharia - que declarou ser lixo aquilo que viu no vídeo da performance de minha qualificação de mestrado, que aquilo era Ciência? Como poderia convencer que aquilo é científico? Não é. Porque nem tudo é mensurável por uma totalização capaz e Capes de racionalidade e método. No entanto, faço sim pesquisa e trabalho muito de outros modos, faço outra coisa, nem método científico, nem método histórico-dialético. Desejo outra coisa, como disse Clarice Lispector, “o que desejo ainda não tem nome”. Seria possível uma agência de pesquisa estatal aceitar isso? Desconfio.  Como uma agência daria conta de tal incompreensão? Como na vida, que nem mesmo o corte do ovo da dieta, lhe garante níveis de colesterol seguro. Como se pode pensar a pesquisa como vida, com todas suas incertezas e possíveis? Penso a vida como obra que é feita em cada encontro e que nenhum prognóstico de Pondé ou da Capes ainda é capaz de determinar. No entanto, eles tentarão, sempre tentarão impedir. Mas Pondé ajuda a pensar e cutuca “Usam táticas do fascismo mais antigo: eliminar o descrente antes de tudo pela redução dele ao silêncio, apostando no medo”.

As ondas de greve que assistimos ou vivemos, para parafrasear um marxista brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca se viu na história recente deste pais, com grevistas que desafiam até mesmo seus líderes sindicais e que não se veem representados por esta estrutura de luta de classe tão fixa põe pra pensar. Nem mesmo o governo que se inventou pela liderança sindical sabe lidar com atual greve. Porque a análise das histórias contadas não ajuda muito na produção histórica do nosso contemporâneo. Nem mesmo é possível esperar para ver o que vai dar, porque tem dado muitas coisas. É pura criação, vida inventada e que exige passagem. Greve em obra como a dos garis no Rio de Janeiro após o carnaval, mas que conseguiram muito mais do que o pouco que o patrão e os líderes sindicais acertaram. Tudo produzindo por uma massa disforme, sem rosto, sem líder fixo, sem aquele clichê que ascensão de candidato para a próxima eleição. Mas isso só saberemos na eleição. Por enquanto “anota aí, eu sou ninguém" junto com Peter Pal Pelbart e outros tantos.

Há muito tempo a Capes ou a Fapemig ou Faperj ou Fapesp, agências de financiamento de pesquisas acadêmicas no Brasil não representam os desejos de um grande grupo de pesquisadores brasileiros. E pesquisadores contrários a isso, enfadados em seus gabinetes, quando estes existem, teorizam e cumprem religiosamente seus afazeres, deixando espaço para não escapar. Aparece neste parecer da Capes que realmente o método histórico-dialético não é um método científico eficaz. No entanto, é um método muito eficaz que mostra que esta cientificidade não é eficiente.

Espero que este acontecimento sirva mais do que para afirmar um fantasma de direita golpista que se apossou do órgão de financiamento. Não me lembro de outro acontecimento que fizesse contraste com o atual. Será que a CAPES endireitou ou a Capes sempre foi mesmo direita? Penso. Espero que corpos se mexam e se afetem ainda mais para além de um fatalismo reclamão acadêmico com tantos qualis e antiprodução. Porque o que vejo é isso! Todo mundo na antiprodução, reclamando, mas produzindo. Como disse D2 “eu me fortaleço é na sua falha”. Onde temos ainda falhado? Ou como temos feito tudo tão certo? Onde a Capes tem nos acertado?

As lutas ideológicas estarão sempre aí. O desejo de um estado laico e igualitário. Devemos lembrar somente, que não existe esta neutralidade científica, isto é uma bela ilusão cristã. As pessoas tem religião ou não tem religião e querem fazer prevalecer seus desejos. Opressores e oprimidos convivendo juntos. Tomemos cuidado pois podemos nos tornar aquilo que tanto repudiamos: censores da vida, fascistas da pesquisa. Pondé nos alertou “Como estes não crentes não formam um grupo, não são articulados nem têm tempo para sê-lo, a truculência dos autoritários faz um estrago diante da inexistência de uma resistência organizada”.


Enquanto quisermos ser reconhecidos por aquilo que não somos, nunca seremos, cientistas naturais, quem sabe naturais cientistas da vida, deixamos de produzir aquilo que melhor sabemos: vida na academia. A Capes como um único modo de pesquisa não nos representa totalmente. É preciso inventar outros possíveis da pesquisa, lembro que luta e resistência e sobretudo, criação sempre fez e fará parte da História. E claro, porque isso tudo envolve capital, dinheiro. Pesquisadores do Brasil, inventemos um novo modo de pesquisa, quem sabe não um novo órgão, mas um novo corpo para pesquisa no Brasil. E Peter lembrando Deleuze diz, "falam sempre do futuro da revolução, mas ignoram o devir revolucionário das pessoas". Que devires anunciamos? É tempo de invenção.