foto: Diversão&Arte - Espaço Cultural, maio/2014 |
Neste momento minhas pesquisas movem-se entre territórios da Educação e Arte e Filosofia e Clínica e e e... E põe-se a pensar que inventa estes encontros. Que encantos? Por se mover por códigos tradicionalmente formatados é importante pensar o que escapa, o que não é possível de ser capturado e aí a loucura se atualiza. Que diferença há entre loucura e normalidade? Que loucura? Loucura como potência para invenção. Que corpos outros inventam-se nos encontros entre corpos, para além de uma distinção entre corpo humano e não humano? A inumanidade como potência para criação de um corpo em criação que inventa mais corpo em criação, que já não é possível distinguir sujeito, objeto, espaço, apenas movimento de desterritorialização, corpos em invenção, corpo. Venho forçando limites entre o que se designa arte da performance e teatro e vida. Que arte? Que vida? Vida como obra de arte, arrisca-se.
Tá lá um corpo estendido no chão
Em vez de um rosto uma foto de um gol
Em vez de reza, uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém[2]
E ele se põe a pensar. Da questão primeira,
texto como corpo e ou corpo como texto pensa-se que corpo cria texto? O não
entendimento do primeiro vídeo apreciado pela curadoria cria corpo. O corpo
explicativo da ação do festival cria texto. O desejo de entendimento, mínimo
que seja, cria corpo. No encontro de corpos a produção de uma crítica, produção
de corpo como texto. Da primeira conversa ao primeiro encontro. O território no qual vivo atualmente se constitui
por um certo exercício crítico constante. Desde aspectos estéticos, políticos,
éticos e econômicos. Há uma hegemonia que tenta valorar tudo, fixado em certos
pressupostos transcendentes aos quais estou submetido, mas que tenho fugido. A
pergunta a ser feita então é: que crítica? Pois alguma coisa cria sentido ao
buscar uma transvaloração[3] dos
valores. Interessa um exercício crítico voltado a pensar o que faz pensar e
não como pensar ou que pensamento é mais ou menos válido. Uma crítica que está
atenta ao que se produz e ao seu funcionamento, mais do que com a qualidade
mensurável por um parâmetro transcendente, ideal ou identitário. Crítica para além
de uma análise explicativa, a explicação já não faz
sentido, embora a sedução por ela esteja sempre presente entre uma cerveja e uma pizza. Uma crítica que inventa múltiplos sentidos composicionais.
Ao invés de pensar qual a melhor
crítica ou o melhor modo de fazer crítica interessa pôr em questão: como
funciona a crítica? Modo possível para tal exercício é o próprio exercitar. Um
mundo da arte se preocupa ou se ocupa em produzir algo que se denomina crítica
de arte. Assim o que se produz é de interesse em produzir algo que sirva ao
mercado, seja ele de entretenimento ou de fruição artística de um metiê de
vanguarda hoje compreendido como Arte Contemporânea, na qual a diversidade de
obras, linguagens e formas de exposição são infindáveis. A figura de alguém
capaz de valorar essa produção diversificada é urgente. Inventa-se a crítica de
arte porque se inventa um mercado de arte, logo, inventa-se uma obra de arte e,
por conseguinte, um artista e claro, um mercado consumidor povoado pelo público,
a massa pagante que sustenta toda a cadeia de produção. Aqui a ordem dos
fatores só altera o produto, não a relação. A crítica toma lugar de destaque e
soberanamente inventa seus parâmetros, regras, valores de bom e ruim, de mal e
bem, de entendido e não entendido, de arte e não arte, de obra e qualquer
coisa. Formalizada majoritariamente por uma produção articulada, rebuscada,
escrita que povoa não apenas os jornais e revistas em cadernos de cultura ou
programas de outras mídias especializadas, mas invade espaços ao lado da obra,
no folheto do espetáculo, na entrada da galeria, no folder de divulgação,
atestando “isso é arte!”. O texto da crítica de arte inventa a obra do artista.
O texto cria corpo. E o corpo obra do artista inventa-se no texto do crítico.
O trabalho de crítica de arte nesta
relação torna-se algo de especialista, coisa de profissional capaz de traduzir,
seduzir, entender o pensamento do artista para que o público possa assistir
e consumir da melhor forma, entre uma pipoca e um refri, o bom produto. A
crítica sempre vem sempre depois. A arte dita Contemporânea, afeita aos moldes
tradicionais, exige o certo exercício de crítica, pois tem-se a impressão que o
público não se sente à vontade com uma produção que parece incompreensível, sem
muito limite entre início, meio e fim ou de linguagem artística (seria dança,
teatro, performance, vídeo-arte, instalação?), tarefa difícil para uma vida
acostumada a entender e explicar.
Mas é bom lembrar
que quem inventou a dita Arte Contemporânea foi uma crítica assombrada por uma
produção em arte que violenta a racionalidade de um mercado interessado apenas
em consumir, em entreter, em distrair. A Arte Contemporânea surge criticamente porque
ela critica uma tradição escolástica de arte, mas ironicamente, ela é produzida
por esta mesma tradição. Porém, esta é uma afirmação de que a arte só pode ser
crítica e nada mais. E aí põe a pensar. A crítica teme seu fim, já que não há
mais parâmetro para tal. O artista já não teria o parâmetro para produzir, o
público perdido à abertura do não entendimento. Quando se perde o valor predeterminado
a urgência é a criação - de um outro valor, Arte Contemporânea? Não. Abre-se a uma
possibilidade de transvaloração apenas possível na relação, fora dela, sem
sentido. Crítica, artista, obra, público na urgência de criar. E quem cria? O
artista criador? Não. A relação artística.
Sem pressa foi
cada um pro seu lado
Pensando numa
mulher ou num time
Olhei o corpo no
chão e fechei
Minha janela de
frente pro crime
O artista
metamorfoseado ora em público, ora em obra, sempre em crítica. Crítica como
violência ao que se pensava mensurável antes do acontecimento da obra. Crítica
a um sujeito que seria capaz de definir e mensurar uma obra depois de seu
acontecimento. Arte inseparável do exercício de crítica. Toda obra de arte
nasce de um movimento crítico: Deleuze e Guattari ao produzir “O anti-Édipo”;
Nietzsche ao produzir “A genealogia da moral”; Foucault ao produzir “A história
da loucura”; Klauss Vianna ao produzir “A dança”; Marcel Duchamp ao produzir “A
fonte”; Augusto Boal ao produzir o Teatro do Oprimido; Artaud ao produzir o Teatro
da Crueldade. Nenhum deles precisa de uma crítica especializada, pois suas
obras se produzem em crítica a um modelo de psicanálise, a um modelo de
produção social, a um modelo de normalidade, a um modelo de dança, a um modelo
de arte, a um modelo de teatro, a um modelo de corpo e sua relação com o texto.
Uma crítica que não se separa da obra. Uma obra na qual a distinção entre
crítica e arte é impossível. Uma crítica que só pode produzir obra. Que corpo
cria crítica? Mas é que a arte que nasce desafiando os modelos esperados segue
aprisionada, por vezes, no rótulo Contemporâneo. Porque arte só se produz no
contemporâneo, no encontro entre corpos, na relação que produz mais corpo. Arte
só produz mais arte. Crítica só produz mais arte. Isso. Uma crítica produzida
com arte na qual já nem seria possível dizer crítica de arte, apenas arte. Uma
obra que obra em arte. Um corpo em obra que só produz mais corpo em obra. Um
corpo produz texto, como este aqui escrito. Um texto que produz corpo ao ser
produzido como texto e ao ser lido. Uma crítica. Uma crítica que não deseja
entender ou explicar, mas em produzir mais corpo, mais arte. Mas se já não há o
artista, o crítico, o púbico... se todo mundo pode ser qualquer coisa, porque
produzir? Como produzir? É porque ninguém sabe o que pode um corpo, ninguém
sabe o que pode um texto, ninguém produz arte por um desejo consciente de se
tornar o artista, se o for, está fadado ao fracasso.
Justamente
quando se põe fim às identidades que se abre à produção, é pela produção que se
perde a identidade limitante. “Aos que lhe perguntam em que consiste a
escrita, Virginia Woolf responde: Quem fala de escrever? O escritor não fala
disso, esta preocupado com outra coisa”[4]. Um artista está mais
interessado em produzir possíveis de vida do que produzir uma obra de arte ou,
sobretudo, produzir vida como obra de arte. A arte se produz como crítica
para dar vazão a vida que não suporta os parâmetros transcendentes, identitários,
limitadores, mensuráveis, comerciais, impotentes. O exercício da arte como
crítica mina um mercado de arte interessado em agradar e produzir produtos
consumíveis e mensuráveis por uma tal Arte Contemporânea ou cachê, para suportar a dureza
da vida. A arte como crítica (e não arte-crítica, ou arte engajada, ou arte
como outro nome) aposta e compõe com a dureza da vida para produzir ainda mais
vida. Assim como Guimarães Rosa nos lembra que a vida quer da gente coragem,
Vinícius de Moraes diz que arte é afirmação de vida e que não ama os covardes. É difícil não ser
enredado por um mercado que quer dominar a todo custo e todos os custos, dar
preço a tudo. De
todos os modos possíveis estamos em relação ao mercado. Nas fugas e nas capturas. Na provocação de
saídas e nas invenções de outras lógicas. No abandono da hegemônica lógica.
Importa agora pensar é que mercado? Sei que toda produção, seja a mais
alternativa ou mais comercial está inserida na lógica de mercado de sua
produção e em
relação à hegemonia. A pergunta que me importa, no momento é: que produção? Que economia
com desdobra ética e estética e política está se praticando? Como funciona a
máquina da criação, para além da mecanicidade do comércio de conceitos e
modismos? Para além de um discurso ressentido e ressequido e estéril. Que
lógica? Que mercado? Como funciona isso que funciona?
Assim, não
precisamos de mais espaços de crítica, pois esta se encontra presente em todos
os territórios que habitamos. Precisamos é inventar, criar mais espaços de
criação, de produção de corpo em usinagem no qual a distinção entre corpo e
texto, obra e crítica seja impossível, percebendo que possíveis de vida ainda
podemos inventar. Os maiores impedimentos são as naturalizações, os pressupostos, as
formas hegemônicas, as identidades, o reconhecimento, as definições de antemão
de um trabalho que está em processo ou a insensibilidade ao processo que é a
própria forma. Ou ainda, os julgamentos prévios a respeito de relações não
costumeiras, como a relação entre arte e educação e filosofia. As desnaturalizações
são constantes, os estranhamentos, o tempo todo presentes, mesmo em área
pressupostamente mais maleável como a Arte. O texto como corpo inventa arte como crítica
para combater a crítica de arte na afirmação de mais espaços para criação. Cuidado, crítica em obra.
[1] Este
texto toma corpo após acontecimento do “CUIDADO! Corpo em obra” apresentado no Festival
de Dança CAUSA desdobrado em NA RETA com curadoria de Juliana França e Letícia Nabuco e TÁ CRÍTICO com parceria de COMO_CLUBE, no dia 22 de maio de 2014, ocorrido no
Diversão & Arte – Espaço Cultural, em Juiz de Fora – MG. Para saber mais acesse http://causaacoesartisticas.wix.com/causa
[2] Música De frente pro crime, de João Bosco e
Aldir Blanc.
[3] Friedrich
Nietzsche propõe a transvaloração de todos os valores, exercício possível ao
abandonar as dicotomias preestabelecidas pela moral judaico-cristã social, que
determina o certo e o errado, o bem e o mal, o que deve ser feito e o que não
deve ser feito, através de leis ideais e transcendentes às relações. Cf.
Nietzsche, Friedrich. A genealogia da Moral. Trad. notas e posfácio Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; e ______. Além do bem e do mal.
Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
[4] Deleuze, Gilles. A literatura e a vida. Critica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.
34, 1997, p. 16.