quinta-feira, 12 de junho de 2014

Não somos científicos. Fazemos vida. Que fazemos, então?


Uma discussão toma conta do virtual facebook e invade o ambiente acadêmico: a CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão federal brasileiro financiador de pesquisas acadêmicas ditas científicas, em resposta ao Edital Procad 071/2013. deu parecer contrário ao projeto que envolve pesquisadores da UnB, UERJ e UFRN com 19 docentes, 09 doutorandos/as, 15 mestrandos/as e 27 graduados/as, intitulado “Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos e as políticas sociais”, por considerar que o método histórico-dialético “não garante os requisitos necessários para que se alcance os objetivos do método científico" e "cuja contribuição à ciência brasileira parece duvidosa".

Os mais assustados indicam de pronto que há um patrulhamento ideológico nunca visto antes, um super conservadorismo que vem tomando conta do Brasil, os prognósticos são os piores. Exemplo disso seria a denuncia de um ritual satânico e abuso sexual que teria ocorrido durante uma festa de encerramento de um evento acadêmico no campus da UFF em Rio das Ostras – RJ, no qual uma garota teria costurado a vagina. Quando ouvi o caso, logo reconheci e sentenciei: performance artística. Juntam-se a essa, denúncias os inúmeros modos de repressão de movimentos sociais e grevista no Brasil inteiro, que vai de prisões que buscam intimidação, ameaça de corte de ponto e demissões, como acontece com os professores do Estado de Minas Gerais; inclusive disputas judiciais que discutem legalidade do ato grevista. É até engraçado, o Estado determinando se é legítimo alguém fazer greve contra o próprio Estado. Seria possível uma sentença contrária ao Estado? Difícil.

Mas o método científico explicaria todo este caos? Ou melhor, seria capaz de explicar e se tornar o juízo de tudo, ora se transfigurando em CAPES, homem vestido de toga ou ocupante da cadeira do legislativo? Desconfio da eficácia do método científico e não tenho dúvidas a respeito de seus objetivos. Afinal, que Ciência? Tradicionalmente o método cientifico é descritivo, ele observa os acontecimentos até seu fim, antes disso, não tem mais nada a fazer, a não ser destilar hipóteses e mais hipóteses hipnotizantes. Ele precisa ver o Todo e espera por um acabamento, pelo fim do processo. Possui uma hipótese teórica que deve ser comprovada empiricamente, na prática, para confirmar ou invalidar a hipótese. Geralmente contesta uma tese reconhecida como verdadeira. Os resultados diferentes da tese contestada formam uma antítese e a observação atenta ao que se mantém e ao que se torna diferente forma uma síntese, que posteriormente defendida e comprovada racionalmente perante a comunidade científica, torna-se uma tese pronta para ser contestada a qualquer momento. 

A posição do cientista, neste caso, é considerada neutra, puramente racional sem se deixar tomar por qualquer julgamento que não seja comprovadamente demonstrável. Uma boa e eficiente pesquisa científica é aquela capaz de ser reproduzida em qualquer lugar, por qualquer cientista competente, observando, no entanto, que é preciso um ambiente ideal para que não influencie no experimento. Em pesquisa, por exemplo, das ciências biomédicas há os chamados grupos de controle estatístico. Para ser testada uma nova droga ou vacina, os indivíduos são divididos em igual número em dois grupos, um receberá a novidade e outro não. Isto para observar um tal efeito placebo daqueles que se sentem melhor sem receber nada em troca, apenas a notícia de que algo está mudando, puro efeito psicológico. Seria este o nosso problema, sofreríamos dos efeitos placebos?


Outro dado interessante, pois toda pesquisa científica deve apresentar com clareza seus dados e suas oposições, fora que ano passado, em novembro de 2013, exatamente, o colunista da Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondé acusava, com texto com título bem sugestivo “Eu acuso” os cursos das ditas Ciências Humanas e Sociais brasileiros e consequentemente, professores dessas áreas do Ensino Médio, de “bullying ideológico” que obriga “jovens a 'fingirem' que são marxistas para não terem resultados ruins” em seus exames de avaliação. Continuava fazendo um prognóstico tenebroso, agora acusando o que ele chamou de esquerda como a grande vilã: “Estamos entrando num período de trevas. Nos partidos políticos, a seita tomou o espectro ideológico na sua quase totalidade. Só há partidos de esquerda, centro-esquerda, esquerda corrupta (o que é normalíssimo) e do 'pântano'. Não há outra opção”. Conclusão, todo mundo com medo e como diria um ditado popular “o cachorro com medo do próprio rabo”.

Desde o surgimento dessa nomenclatura Ciência Humanas, posteriormente, o desejo de se diferenciar ainda mais em Ciências Políticas, Ciências Sociais, já ouvi falar até de uma Ciência da Arte – isso sim é de causar pavor! – há uma necessidade de afirmar o valor cientifico de tais áreas, muito vezes obrigando-as a se adaptarem ou a se adequarem com termos análogos às cientificidades. Atualmente, aqui na Universidade na qual realizo minhas pesquisas, há um movimento por parte dos cursos humanos em negar a submissão de seus projetos ao Conselho de Ética da instituição formado e regrado hegemonicamente por pesquisadores das ditas Ciências Exatas e Biomédicas, pouquíssimos Humanas. A respeito desta discussão há um belo texto de Hannah Arendt "Entre o passado e o futuro" que discute com tamanha genialidade a questão da História para se firmar como Ciência, entre outras tantas coisas.

Não saberia definir cientificamente o tal método histórico-dialético, mas me lembro de uma disciplina de pesquisa cursada na pós-graduação em Educação orientada por um professor conhecido como marxista. Penso que poderia ter feito outra coisa ao invés da disciplina obrigatória, que não fora uma determinação ditatorial do professor, diga-se de passagem. No entanto, dada a simpatia do sotaque, a responsabilidade e a teatralidade, a aula se tornou, em certo ponto, divertida e produtiva, com algumas boas histórias para contar. Lembro-me de que ele falava muito contra um modo positivista que domina as Ciências da Natureza. Atacava esse mito da neutralidade da investigação, dizia sempre que qualquer decisão científica tinha seu teor ideológico. O que diria, hoje, um médico a respeito do consumo do ovo para um dono de granja, que anos a fio, viu seu produto ser vilão da dieta? “Agora pode, cientificamente controverso.” Atentava também para um relativismo, no qual tudo seria possível, contudo que fosse explicado de modo racionalmente entendido e que, por isso, não havia apenas uma História, mas fatos históricos prontos para serem interpretados para se inventar outros tantos sentidos. Apostava na História como um contínuo que se sucedia desde a pré-história, se movimentando através de Revoluções e que olhando o passado, seria possível perceber ou prever alguns movimentos futuros, como ascensão e declínio de classes sociais. Sempre lembrando que a produção e o poder econômico eram determinantes.

Lembrei-me agora do artista Flávio de Carvalho que na década de 20 do século passado trajou uma sai numa rua paulistana movimentada. Ou quando calçou chapéu e seguiu na direção contrária a uma procissão católica, quase fora linchado. Risco ao questionar padrões e modelos hegemônicos, como a “Xereca Satanik” que serviu para saber que os índices de estupro a mulheres na cidade de Rio das Ostras – RJ vem aumentando neste ano ao invés de anular ou diminuir. Ou como o performer sul-africano Steven Cohen que amarrara um fio ao seu pênis e a um galo e que fora condenado pela Justiça Francesa por “exibicionismo sexual” ao contestar as proibições do país que por vezes achamos sinônimo de "Liberté, Egalité, Fraternité", "Estou mostrando a minha parte mais íntima, dizendo: sou homem, judeu, gay, branco", declarou Cohen.

O que me parece quando leio algum trabalho guiado pelo método histórico-dialético é que a tensão sempre existiu e sempre existe porque existe vida e a vida não ama os covardes, me apropriando de Vinícius de Moraes. O que há são forças em guerra, apesar da análise histórico-dialética, por vezes, se guiar pela interpretação e pela representação ao invés de dar vazão a elas. Este pensamento científico de superação, neutralidade e racionalidade empírica nem sempre funciona, como nem sempre funciona no laboratório. Ao que parece, já nem seria necessário ou nem seria um exercício interessante dizer que o método dito marxista seria científico, pois ele problematiza o próprio parâmetro de cientificidade. Como poderia convencer meu amigo formado no IME - Instituto Militar de Engenharia - que declarou ser lixo aquilo que viu no vídeo da performance de minha qualificação de mestrado, que aquilo era Ciência? Como poderia convencer que aquilo é científico? Não é. Porque nem tudo é mensurável por uma totalização capaz e Capes de racionalidade e método. No entanto, faço sim pesquisa e trabalho muito de outros modos, faço outra coisa, nem método científico, nem método histórico-dialético. Desejo outra coisa, como disse Clarice Lispector, “o que desejo ainda não tem nome”. Seria possível uma agência de pesquisa estatal aceitar isso? Desconfio.  Como uma agência daria conta de tal incompreensão? Como na vida, que nem mesmo o corte do ovo da dieta, lhe garante níveis de colesterol seguro. Como se pode pensar a pesquisa como vida, com todas suas incertezas e possíveis? Penso a vida como obra que é feita em cada encontro e que nenhum prognóstico de Pondé ou da Capes ainda é capaz de determinar. No entanto, eles tentarão, sempre tentarão impedir. Mas Pondé ajuda a pensar e cutuca “Usam táticas do fascismo mais antigo: eliminar o descrente antes de tudo pela redução dele ao silêncio, apostando no medo”.

As ondas de greve que assistimos ou vivemos, para parafrasear um marxista brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca se viu na história recente deste pais, com grevistas que desafiam até mesmo seus líderes sindicais e que não se veem representados por esta estrutura de luta de classe tão fixa põe pra pensar. Nem mesmo o governo que se inventou pela liderança sindical sabe lidar com atual greve. Porque a análise das histórias contadas não ajuda muito na produção histórica do nosso contemporâneo. Nem mesmo é possível esperar para ver o que vai dar, porque tem dado muitas coisas. É pura criação, vida inventada e que exige passagem. Greve em obra como a dos garis no Rio de Janeiro após o carnaval, mas que conseguiram muito mais do que o pouco que o patrão e os líderes sindicais acertaram. Tudo produzindo por uma massa disforme, sem rosto, sem líder fixo, sem aquele clichê que ascensão de candidato para a próxima eleição. Mas isso só saberemos na eleição. Por enquanto “anota aí, eu sou ninguém" junto com Peter Pal Pelbart e outros tantos.

Há muito tempo a Capes ou a Fapemig ou Faperj ou Fapesp, agências de financiamento de pesquisas acadêmicas no Brasil não representam os desejos de um grande grupo de pesquisadores brasileiros. E pesquisadores contrários a isso, enfadados em seus gabinetes, quando estes existem, teorizam e cumprem religiosamente seus afazeres, deixando espaço para não escapar. Aparece neste parecer da Capes que realmente o método histórico-dialético não é um método científico eficaz. No entanto, é um método muito eficaz que mostra que esta cientificidade não é eficiente.

Espero que este acontecimento sirva mais do que para afirmar um fantasma de direita golpista que se apossou do órgão de financiamento. Não me lembro de outro acontecimento que fizesse contraste com o atual. Será que a CAPES endireitou ou a Capes sempre foi mesmo direita? Penso. Espero que corpos se mexam e se afetem ainda mais para além de um fatalismo reclamão acadêmico com tantos qualis e antiprodução. Porque o que vejo é isso! Todo mundo na antiprodução, reclamando, mas produzindo. Como disse D2 “eu me fortaleço é na sua falha”. Onde temos ainda falhado? Ou como temos feito tudo tão certo? Onde a Capes tem nos acertado?

As lutas ideológicas estarão sempre aí. O desejo de um estado laico e igualitário. Devemos lembrar somente, que não existe esta neutralidade científica, isto é uma bela ilusão cristã. As pessoas tem religião ou não tem religião e querem fazer prevalecer seus desejos. Opressores e oprimidos convivendo juntos. Tomemos cuidado pois podemos nos tornar aquilo que tanto repudiamos: censores da vida, fascistas da pesquisa. Pondé nos alertou “Como estes não crentes não formam um grupo, não são articulados nem têm tempo para sê-lo, a truculência dos autoritários faz um estrago diante da inexistência de uma resistência organizada”.


Enquanto quisermos ser reconhecidos por aquilo que não somos, nunca seremos, cientistas naturais, quem sabe naturais cientistas da vida, deixamos de produzir aquilo que melhor sabemos: vida na academia. A Capes como um único modo de pesquisa não nos representa totalmente. É preciso inventar outros possíveis da pesquisa, lembro que luta e resistência e sobretudo, criação sempre fez e fará parte da História. E claro, porque isso tudo envolve capital, dinheiro. Pesquisadores do Brasil, inventemos um novo modo de pesquisa, quem sabe não um novo órgão, mas um novo corpo para pesquisa no Brasil. E Peter lembrando Deleuze diz, "falam sempre do futuro da revolução, mas ignoram o devir revolucionário das pessoas". Que devires anunciamos? É tempo de invenção.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Na reta dá crítica

foto: Diversão&Arte - Espaço Cultural, maio/2014

Neste momento minhas pesquisas movem-se entre territórios da Educação e Arte e Filosofia e Clínica e e e... E põe-se a pensar que inventa estes encontros. Que encantos? Por se mover por códigos tradicionalmente formatados é importante pensar o que escapa, o que não é possível de ser capturado e aí a loucura se atualiza. Que diferença há entre loucura e normalidade? Que loucura? Loucura como potência para invenção. Que corpos outros inventam-se nos encontros entre corpos, para além de uma distinção entre corpo humano e não humano? A inumanidade como potência para criação de um corpo em criação que inventa mais corpo em criação, que já não é possível distinguir sujeito, objeto, espaço, apenas movimento de desterritorialização, corpos em invenção, corpo. Venho forçando limites entre o que se designa arte da performance e teatro e vida. Que arte? Que vida? Vida como obra de arte, arrisca-se.

Tá lá um corpo estendido no chão
Em vez de um rosto uma foto de um gol
Em vez de reza, uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém[2]

E ele se põe a pensar. Da questão primeira, texto como corpo e ou corpo como texto pensa-se que corpo cria texto? O não entendimento do primeiro vídeo apreciado pela curadoria cria corpo. O corpo explicativo da ação do festival cria texto. O desejo de entendimento, mínimo que seja, cria corpo. No encontro de corpos a produção de uma crítica, produção de corpo como texto. Da primeira conversa ao primeiro encontro. O território no qual vivo atualmente se constitui por um certo exercício crítico constante. Desde aspectos estéticos, políticos, éticos e econômicos. Há uma hegemonia que tenta valorar tudo, fixado em certos pressupostos transcendentes aos quais estou submetido, mas que tenho fugido. A pergunta a ser feita então é: que crítica? Pois alguma coisa cria sentido ao buscar uma transvaloração[3] dos valores. Interessa um exercício crítico voltado a pensar o que faz pensar e não como pensar ou que pensamento é mais ou menos válido. Uma crítica que está atenta ao que se produz e ao seu funcionamento, mais do que com a qualidade mensurável por um parâmetro transcendente, ideal ou identitário. Crítica para além de uma análise explicativa, a explicação já não faz sentido, embora a sedução por ela esteja sempre presente entre uma cerveja e uma pizza. Uma crítica que inventa múltiplos sentidos composicionais.

Ao invés de pensar qual a melhor crítica ou o melhor modo de fazer crítica interessa pôr em questão: como funciona a crítica? Modo possível para tal exercício é o próprio exercitar. Um mundo da arte se preocupa ou se ocupa em produzir algo que se denomina crítica de arte. Assim o que se produz é de interesse em produzir algo que sirva ao mercado, seja ele de entretenimento ou de fruição artística de um metiê de vanguarda hoje compreendido como Arte Contemporânea, na qual a diversidade de obras, linguagens e formas de exposição são infindáveis. A figura de alguém capaz de valorar essa produção diversificada é urgente. Inventa-se a crítica de arte porque se inventa um mercado de arte, logo, inventa-se uma obra de arte e, por conseguinte, um artista e claro, um mercado consumidor povoado pelo público, a massa pagante que sustenta toda a cadeia de produção. Aqui a ordem dos fatores só altera o produto, não a relação. A crítica toma lugar de destaque e soberanamente inventa seus parâmetros, regras, valores de bom e ruim, de mal e bem, de entendido e não entendido, de arte e não arte, de obra e qualquer coisa. Formalizada majoritariamente por uma produção articulada, rebuscada, escrita que povoa não apenas os jornais e revistas em cadernos de cultura ou programas de outras mídias especializadas, mas invade espaços ao lado da obra, no folheto do espetáculo, na entrada da galeria, no folder de divulgação, atestando “isso é arte!”. O texto da crítica de arte inventa a obra do artista. O texto cria corpo. E o corpo obra do artista inventa-se no texto do crítico.

O trabalho de crítica de arte nesta relação torna-se algo de especialista, coisa de profissional capaz de traduzir, seduzir, entender o pensamento do artista para que o público possa assistir e consumir da melhor forma, entre uma pipoca e um refri, o bom produto. A crítica sempre vem sempre depois. A arte dita Contemporânea, afeita aos moldes tradicionais, exige o certo exercício de crítica, pois tem-se a impressão que o público não se sente à vontade com uma produção que parece incompreensível, sem muito limite entre início, meio e fim ou de linguagem artística (seria dança, teatro, performance, vídeo-arte, instalação?), tarefa difícil para uma vida acostumada a entender e explicar.

Mas é bom lembrar que quem inventou a dita Arte Contemporânea foi uma crítica assombrada por uma produção em arte que violenta a racionalidade de um mercado interessado apenas em consumir, em entreter, em distrair. A Arte Contemporânea surge criticamente porque ela critica uma tradição escolástica de arte, mas ironicamente, ela é produzida por esta mesma tradição. Porém, esta é uma afirmação de que a arte só pode ser crítica e nada mais. E aí põe a pensar. A crítica teme seu fim, já que não há mais parâmetro para tal. O artista já não teria o parâmetro para produzir, o público perdido à abertura do não entendimento. Quando se perde o valor predeterminado a urgência é a criação - de um outro valor, Arte Contemporânea? Não. Abre-se a uma possibilidade de transvaloração apenas possível na relação, fora dela, sem sentido. Crítica, artista, obra, público na urgência de criar. E quem cria? O artista criador? Não. A relação artística.

Sem pressa foi cada um pro seu lado
Pensando numa mulher ou num time
Olhei o corpo no chão e fechei
Minha janela de frente pro crime

O artista metamorfoseado ora em público, ora em obra, sempre em crítica. Crítica como violência ao que se pensava mensurável antes do acontecimento da obra. Crítica a um sujeito que seria capaz de definir e mensurar uma obra depois de seu acontecimento. Arte inseparável do exercício de crítica. Toda obra de arte nasce de um movimento crítico: Deleuze e Guattari ao produzir “O anti-Édipo”; Nietzsche ao produzir “A genealogia da moral”; Foucault ao produzir “A história da loucura”; Klauss Vianna ao produzir “A dança”; Marcel Duchamp ao produzir “A fonte”; Augusto Boal ao produzir o Teatro do Oprimido; Artaud ao produzir o Teatro da Crueldade. Nenhum deles precisa de uma crítica especializada, pois suas obras se produzem em crítica a um modelo de psicanálise, a um modelo de produção social, a um modelo de normalidade, a um modelo de dança, a um modelo de arte, a um modelo de teatro, a um modelo de corpo e sua relação com o texto. Uma crítica que não se separa da obra. Uma obra na qual a distinção entre crítica e arte é impossível. Uma crítica que só pode produzir obra. Que corpo cria crítica? Mas é que a arte que nasce desafiando os modelos esperados segue aprisionada, por vezes, no rótulo Contemporâneo. Porque arte só se produz no contemporâneo, no encontro entre corpos, na relação que produz mais corpo. Arte só produz mais arte. Crítica só produz mais arte. Isso. Uma crítica produzida com arte na qual já nem seria possível dizer crítica de arte, apenas arte. Uma obra que obra em arte. Um corpo em obra que só produz mais corpo em obra. Um corpo produz texto, como este aqui escrito. Um texto que produz corpo ao ser produzido como texto e ao ser lido. Uma crítica. Uma crítica que não deseja entender ou explicar, mas em produzir mais corpo, mais arte. Mas se já não há o artista, o crítico, o púbico... se todo mundo pode ser qualquer coisa, porque produzir? Como produzir? É porque ninguém sabe o que pode um corpo, ninguém sabe o que pode um texto, ninguém produz arte por um desejo consciente de se tornar o artista, se o for, está fadado ao fracasso.

Justamente quando se põe fim às identidades que se abre à produção, é pela produção que se perde a identidade limitante. “Aos que lhe perguntam em que consiste a escrita, Virginia Woolf responde: Quem fala de escrever? O escritor não fala disso, esta preocupado com outra coisa”[4]. Um artista está mais interessado em produzir possíveis de vida do que produzir uma obra de arte ou, sobretudo, produzir vida como obra de arte. A arte se produz como crítica para dar vazão a vida que não suporta os parâmetros transcendentes, identitários, limitadores, mensuráveis, comerciais, impotentes. O exercício da arte como crítica mina um mercado de arte interessado em agradar e produzir produtos consumíveis e mensuráveis por uma tal Arte Contemporânea ou cachê, para suportar a dureza da vida. A arte como crítica (e não arte-crítica, ou arte engajada, ou arte como outro nome) aposta e compõe com a dureza da vida para produzir ainda mais vida. Assim como Guimarães Rosa nos lembra que a vida quer da gente coragem, Vinícius de Moraes diz que arte é afirmação de vida e que não ama os covardes. É difícil não ser enredado por um mercado que quer dominar a todo custo e todos os custos, dar preço a tudo. De todos os modos possíveis estamos em relação ao mercado. Nas fugas e nas capturas. Na provocação de saídas e nas invenções de outras lógicas. No abandono da hegemônica lógica. Importa agora pensar é que mercado? Sei que toda produção, seja a mais alternativa ou mais comercial está inserida na lógica de mercado de sua produção e em relação à hegemonia. A pergunta que me importa, no momento é: que produção? Que economia com desdobra ética e estética e política está se praticando? Como funciona a máquina da criação, para além da mecanicidade do comércio de conceitos e modismos? Para além de um discurso ressentido e ressequido e estéril. Que lógica? Que mercado? Como funciona isso que funciona?

Assim, não precisamos de mais espaços de crítica, pois esta se encontra presente em todos os territórios que habitamos. Precisamos é inventar, criar mais espaços de criação, de produção de corpo em usinagem no qual a distinção entre corpo e texto, obra e crítica seja impossível, percebendo que possíveis de vida ainda podemos inventar. Os maiores impedimentos são as naturalizações, os pressupostos, as formas hegemônicas, as identidades, o reconhecimento, as definições de antemão de um trabalho que está em processo ou a insensibilidade ao processo que é a própria forma. Ou ainda, os julgamentos prévios a respeito de relações não costumeiras, como a relação entre arte e educação e filosofia. As desnaturalizações são constantes, os estranhamentos, o tempo todo presentes, mesmo em área pressupostamente mais maleável como a Arte. O texto como corpo inventa arte como crítica para combater a crítica de arte na afirmação de mais espaços para criação. Cuidado, crítica em obra.



[1] Este texto toma corpo após acontecimento do “CUIDADO! Corpo em obra” apresentado no Festival de Dança CAUSA desdobrado em NA RETA com curadoria de Juliana França e Letícia Nabuco e TÁ CRÍTICO com parceria de COMO_CLUBE, no dia 22 de maio de 2014, ocorrido no Diversão & Arte – Espaço Cultural, em Juiz de Fora – MG. Para saber mais acesse http://causaacoesartisticas.wix.com/causa 
[2] Música De frente pro crime, de João Bosco e Aldir Blanc.
[3] Friedrich Nietzsche propõe a transvaloração de todos os valores, exercício possível ao abandonar as dicotomias preestabelecidas pela moral judaico-cristã social, que determina o certo e o errado, o bem e o mal, o que deve ser feito e o que não deve ser feito, através de leis ideais e transcendentes às relações. Cf. Nietzsche, Friedrich. A genealogia da Moral. Trad. notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; e ______. Além do bem e do mal. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[4] Deleuze, Gilles. A literatura e a vida. Critica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 16. 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Transbordando as bordas do corpo

foto retirada da página https://www.facebook.com/TemasDeDanca/
Acabo de participar de um evento que se propôs a discutir dança no MAR, mas sem se molhar. O nome, muito sugestivo, Bordas do Corpo: dança, política e experimentação, finalização do projeto Temas de Dança – Estudo Itinerante. Ao longo de um dia passam à frente de uma plateia atenta e receptiva 15 convidados implicados entre corpo, dança, política e algo chamado no material de divulgação de “tensões entre dança e escrita”.

Filosofia, conceitos, literatura, causa indígena, indianista, social, árvore, manifestações de rua, ilha de Florianópolis, Sergio Cabral, Eduardo Paes, Copa, obras, mapa do Rio, comunidades, periferia, edital de fomento, Psicanálise, coletivos, resistência, ilha de Meiembipe, Esquizoanálise, Festival de Circo, ilha de Nossa Senhora do Desterro, Deleuze em suas mais variadas possibilidades de prosódia e entonação, acompanhado em alguns casos de Félix Guatari ou George Agamben, corpo. Mas e a dança? “Nossa proposta se alia ao gesto que desestabiliza as separações instituídas entre teoria e prática”. Sim, desestabilizado, provocado, penso.

Não que eu queira que houvesse esse ou aquele tipo de dança, talvez uma tentativa de dançar com palavras, com as cadeiras, com o aleatório da fala da mesa sem mesa, com o MAR... O mar e suas ondas, vento, sol, luz e muito barulho. Mar arrebenta em mim. Mas antes de dançar na academia é sempre preciso fazer um retrospecto, fazer um recorte da realidade, uma contextualização de tantos ignorantes àquilo que chamamos dança, porque dança, há muitas, corpo então. Já me incomodou mais esta relação de interesses muito utilitaristas entre academia e arte. Hoje pouco menos. Agora, me incomoda apenas quando a academia deixar de inventar arte, deixa de dançar quando era a única coisa que poderia ser feita em biologia, na Ciência da Computação, na Psicologia, na Zoologia, na Arte, na Dança. Arte como modo de produção que inaugura um novo mundo, sem se importar em reproduzir mundo ou sem se importa com a “recriação de questões que atravessam o cotidiano”, mas implicada com a criação de questões ou ocupada com as questões que atravessam o cotidiano, apenas produção de mundo. E aí vem, como dançar na Dança?

O que assisti fora pesquisadores muito a vontade com seus títulos de pesquisador, com sua representação de professores à frente de alunos. Articulados especialistas, sabidos, doutos, profissionais, seguros daquilo que faziam e da proposta do evento “encetam novos modos de relação com o mundo”, mas assentados demais, ignoram um mundo a sua frente. Não acho que seja impossível a relação entre arte e academia, aliás, a academia só vive quando faz arte. E muitos fazem isso muito bem embora o risco seja sempre presente de sermos engolidos, capturados, sequestrados por enfadonhos conceituais, discursos extremados de explicações e ideal de metodologia reproduzível. Vejo muitos artistas bem formados pela academia, artistas a serviço da academia, quase uma escola de samba em cadência pouco variada, que teme qualquer ousadia com medo de deixar o grupo especial e ir para o grupo de acesso na quarta-feira de cinzas, mesmo que a alegria do desfile seja intensa. Afinal, temos jurados e alguns, já jurados de morte. Mas quais outros possíveis entre arte e academia, sem ser arte acadêmica ou arte conceitual? O conceito é antes arte.

Não se trata de artistas formados para estar ou falar de arte acadêmica, pelo contrário, acadêmicos que inventam uma academia em arte. Como fazer um pas-de-deux de um parágrafo? Como fazer um arabesque de conceito e não o conceito de arabesque? Palavras dançantes e não coreografias rígidas de palavras de uma academia de dança que pretende cooptar os movimentos do corpo através de um sem sentido de muitos sentidos de uma tal dança conceitual. Continuo não entendendo o sentido de dança conceitual. Talvez dança de conceitos, conceitos corpo de baile que se veste para cerimônia de gala, mas em performance abala o esperado da etiqueta, como um Nijinski em noite de gozos de Fauno. Dança não é conceitual, dança é conceito, conceito uma multiplicidade de sentidos, um mundo a ser explorado para ser inventado.

Há sempre os que podem afirmar buscando a alegria na boa vontade, no discurso da importância do espaço, em estar no MAR mesmo sem nadar, um tal “campo de reflexão e de experimentação”. Continuamos a ocupar lugares da diferença com o mais do mesmo de sempre. Antes uma flexão corpo em dança que uma tentativa de recuperar algo que se perde na reflexão da memória caduca. Dançamos sem música. Há ainda os mais otimistas que apontam, mas graças a isso foi capaz de falar sobre isso, então serviu para alguma coisa. Servimos a muitas coisas, uma a arte a serviço de uma academia. Preferia estar dançando, talvez não tivesse ainda muita coisa a dizer a não ser em corpo movimento, só desejo de dança, mais nada.

Mas a diferença sempre se produz, é sempre produção. E da plateia cansada de tanta falação surge o grito: mas precisamos mesmo de dizer que o espaço é pouco, já que o pouco que conseguimos foi com muita dança? Conseguiremos dançando ou discutindo em mesas sem mesa? Os dois. O que precisamos fazer mais? Abalar o costume, o esperado da discussão com Eduardo Paes, Sérgio Cabral, com Dilma, só para falar da representação. Mas temos perdido muito tempo discutindo e esquecendo de investir no “gesto que desestabiliza as separações instituídas entre teoria e prática”, entre lugar para dança e lugar para discussão com fala, como se dançar já não fosse o próprio e autêntico discurso nosso. Cuidemos para não esquizofrenizar, aceitar os campos delimitados e artificializados pela neurose segmentária, separando dança da discussão, se ver que dança só pode ser discussão, senão acabamos mesmo é dançando.

E então o que nos resta? Resta corpo. Quando tudo já não resta resta ainda corpo, como grita, grunhe e articula Antonin Artaud na sua transmissão radiofônica pouco antes de sua morte “Para acabar com o julgamento de Deus”. Assusta quando o vemos tão asséptico, comportado, neurotizado, articulado e compreensível como recadinho inocente de amigos do colegial. Artaud dedica a você toda a sua loucura esquizofrênica e potente que escorre pelo corpo que nem mais se importa com órgãos e organismo ou organização.
Mas no passo de negação do filósofo como especialista em dança vem convite ao salto: o maior ato de transgressão do corpo é dança, diz Peter Pál Pelbart. Vualá! Põe todos para dançar! Faz meu pensamento abrir em en dehors, estirando o músculo sem aquecimento. O filósofo dança.

Temos sabido dançar no ritmo da academia há um bom tempo Coreografias em lattes, Capes e CNPq. Dançamos conforme a música. Mas há corpos que desarranjados pelo seu contemporâneo sem se importar com uma tal contemporaneidade, inventam suas próprias grafias, seu khoros singular na pura diferença do descompasso da música da academia mercadológica do corpo hipertrofiado, inventando arte na academia. Alguns como os Corpos Informáticos do centro do Brasil, que como dizem, mentem e fazem fuleragem e até publicam livros e preenchem lattes e latem também. "A arte trata, maltrata, trai a técnica ou a tecnologia." (MEDEIROS, 2011, p.16) A tecnologia uníssona academissista do passinho de baile, da coreografia de mercado do tchan, do Lepo-Lepo ou das Poderosas. É preciso trair e maltratar a técnica da regência dos corpos acadêmicos. Mas sem fatalismo ou ressentimento, afirmando que a vida é isso mesmo, guerra sem paz ideal e é preciso coragem como Guimarães e seus Sertões.

Temos sabido muito bem, rigorosamente bem justificar nossas danças em articulados ensejos filosóficos. Adequamos brilhantemente cada ato artístico ao discurso acadêmico. Embora nos afastemos em inversa proporção do discurso acadêmico como ato artístico. E não que seja impossível escrever arte ou escrever provocados pela dança, pelo teatro, outros já o fizeram com potência animadora como Jerzy GrotowskiAntonin ArtaudConstanin StanislavskiAugusto BoalKlauss Vianna, para citar poucos. Chegou o tempo em que fazer arte é urgente! E não se trata do modo x ou y de fazer arte, mas questionar o modo único que se tem praticado ao pensar arte na academia. Adequamos maravilhosamente nossa arte à academia. Ao passo que a academia grite por uma arte de não adequação. Talvez possamos ousar mais em textos acadêmicos dançantes, de seminários acadêmicos em dança e não apenas sobre dança. Talvez sobre a dança, encima da dança, assentados na dança, não em cadeiras, ou cadeiras dançantes. Quem sabe precisássemos dançar mais com editais, nos Palácios, nas ruas, nas reuniões das Câmaras, do Congresso assim como fez os Corpos Informáticos no pulando corda à beira do lago ou no pátio da Capes em Brasília, pulando corda nu, com apoio da Capes. 

Temos sabido muito bem escrever sobre dança, teorizar sobre dança, discutir dança, fomentar dança, embora saibamos que é preciso mais. Engraçado ler filósofos que em certo sentido, ao fim de suas vidas, tenham se interessado em afirmar a arte como modo de vida, como Foucault, Nietzsche, Deleuze. Constrangedor ver artistas ao logo de suas vidas tentando adequar sua arte ao discurso da filosofia. Nem discurso, nem edital, nem reunião com o prefeito, nem verbas. Contudo, tudo isso merece ser discutido, mas só isso, discutido. Mas quem sabe dançado. Mas quem sabe que dança? Como discutir dança? Qual a coreografia que precisa ser inventada, experimentada? Temos sabido estar na academia de dança, mas dançamos pouco ou dançamos apenas o lepo-lepo acadêmico travestido em assistencialismo social ou discurso de educabilidade quanto é preciso mais arte de saneamento, mais arte de escola, mais arte de segurança, mais arte em trabalho digno, mais criação. No encontro Vulnerável do dia anterior, na UERJ, com o filme "Corpo Santo" de Maurício Dias & Walter Riedweg + Juliana Franklin + Júlio Verzstman, na desdobra do trabalho artístico produzido no Instituto de Psiquiatria, IPUB/UFRJ, Peter Pál Pelbart na saga pelo Rio de Janeiro, afirma que a Cia. Ueinzz nasce no contexto hospitalar lembrando que para produzir mais vida, foi preciso ultrapassar os limites das instituições da loucura, foi preciso abandonar literalmente "A Casa", lançando uma a fala terapêutica para curar qualquer ressentimento idealista. Chegou o tempo de matar o tempo para que o tempo não nos mate sem divagar. Lembrando que temos sabido fazer nosso dever de casa, da academia, do Estado, da vida muito bem. Mas que devemos ainda fazer sem dever nada a ninguém? Uma academia em arte grita por mais dança na academia, na rua, na favela, no MAR, no mar, pois temos tomado muito cuidado conceitual para produzir dança, quando dança é um conceito, conceito não confundido ou fundido em palavra, talvez uma fusão de palavra, uma fundição, uma usina de produção, de modo de ação que põe corpo para funcionar.

E como provoca Peter, dançar é uma revolução, sobretudo na academia. Fica o convite à dança na academia, na rua, no texto, na vida! Porque fazer conceito é coisa de filosofia, não de artista. Quem sabe de artistas em filosofia, quem sabe... Então, quais danças ensaiamos agora? Fica o convite ao próximo passo.


Referência:

MEDEIROS, Beatriz de. Pesquisa em arte, linguagem da arte ou Como escrever sobre o pensamentocomocorpointeiro. In.: AQUINO, Fernando; ______. (Org.) Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora PPGA, UnB, 2011.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Nu questão de uma qualificação

                Antes de chegar ao dia solene, surgiram inúmeros possíveis roteiros para minha apresentação que deveria ter aproximadamente 20 minutos. Ler o texto todo que se materializou numa caixa de plástico, produzida com as capas do kit qualificação do PPGE, com um caderno de bordas de 20 folhas escrituradas, 22 folhas de texto em papel vegetal, duas folhas de texto em folha de plástico em transparência, um texto em folha A4 em papel couché, um texto em  folha A3, um texto em folha de 168 cm X 58 cm, um texto em folha formato de círculo com 90 cm de diâmetro, um texto em folha enrolada com aproximadamente 200 cm, se tornou tarefa difícil e talvez desinteressante em tempo tão curto. 
Por minha natureza performática, não faltaram advertências alheias para que não ficasse nu durante a apresentação. Colegas de grupo, amigos de curso, conhecidos que só desconhecidos de diferentes lugares.                 De pronto afastei a ideia de tirar a roupa, pois parecia óbvia demais para um trabalho que não queria parecer óbvio demais. Curiosa imagem que inventamos em algumas relações ou os desnudamentos que parecemos provocar, mesmo quando não estamos sem roupa, porque depois de pouco mais de 25 trabalhos artísticos, troquei de roupa em cena em apenas duas apresentações. Mas há algo no nu que provoca, que faz a fama sem deitar na cama. Potente o desnudar forma para inventar mais forma. Porque a gente sempre inventa uma forma de inventar forma. Que forma?
              Comecei então a pensar em outras coisas: músicas, gostava de muitas músicas, algumas produzidas por uma filosofia potente tal qual aquelas lidas nos livros filosóficos, com charme de pôr o pensamento para cantar e dançar. Dia 27 de março, Dia internacional do Teatro, me qualificava no dia 26. Lembrei-me da minha defesa de monografia pela Faculdade Angel Vianna - RJ, dia 27 de março de 2011, quando fora orientado pela primeira vez por Maria Helena Falcão. Naquele dia, li a mensagem de Augusto Boal, escrita em 2009, na qual ele destacava a relação composicional entre teatro e vida. Aguçando nosso olhar para as relações teatralizadas que vivenciamos cotidianamente, como aquela que agora protagonizava. Personagens, figurinos e espaços bem definidos, texto dramático com rigor linguístico invejável pelo dicionário, palco e plateia, conflito dramático, clímax e desfecho da trama.
               Depois pensei que o silêncio após tanta falação e escrita seria um bom exercício.
              Precisava criar um corpo ou um corpo qualificado pelo mestrado estava por ser criado. Mas o que pode um corpo? Ou, como se cria um corpo? E na Academia, como se cria um corpo? Com um texto? Ou o texto seria já corpo? Um texto cria corpo ou um corpo cria texto? O texto é corpo. Como corpo cria corpo? E o corpo põe-se como questão. Que corpo? Que corpo habita o território da Educação? Corpos educados. Corpos orquiectomizados? Que corpo cria Educação? Educação como corpo. Que corpo cria corpo educação? Que corpo cria corpo? Que corpo?
              Um corpo forma texto cria. Um corpo cria mais corpo na escrita. Corpo é escrita. Escrita é corpo. Corpoescritatecido lembrava também o trabalho com Nina, criador de tanto corpo. Agora, tanta coisa criava aquele corpo submetido à qualificação, porém composto por tanta coisa que não apenas acontecia na qualificação. Tempo do mestrado implodido por acontecimentos que arrombavam as paredes institucionais. Escrita da pele. Pensava: um vídeo com imagens que tem produzido corpo junto à pesquisa do mestrado, apesar de não fazer parte do cronos mestrado, por vir antes e por não está dito pela língua régia da pesquisa acadêmica, mas por outra língua que produz corpo. Corpo em produção. Corpo produzido. Corpo produzindo. Corpo que inventa corpo. O corpo assalta a cena.
              O corpo texto encontra + corpo em produção de mais corpo. Como corpoescritatecido, corpo cola no texto na produção de corpo. Corpo + imagem + texto + música + cola + corpo + papel + cola + corpo + música + texto + cola + cola + música + imagem + cola + texto + corpo + imagem + cola + texto + cola + corpo +++++++++++++++++ = forma = educação outra = corpo = nu.
Outro corpo. Outra produção. Outro possível. Uma garota é impedida de ficar nua na escola ou é permitida graças à um discurso adoecido: ela pode, coitada, é doidinha mesmo. Ela sempre fica nua, ela sempre causa constrangimento. Aqui o sempre não naturaliza, pelo contrário, constrange e desnaturaliza a atitude já esperada.  A paciente professora e amiga Cláudia Meireles problematiza por lá: e se experimentássemos outra coisa, e se experimentássemos o momento dela de experimentar o nu na sua nudez de possibilidade e não na ansiedade do desejo da expectativa por cobrir o corpo. A diretora responde cansada: já tentamos isso aí, outras coisas.
             Clarissa Alcântara comendo algumas frutas da banca provoca, experiência tem a ver com memória. Repetição com memória da o Mesmo. Repetição com esquecimento é diferença. E Claudia continua a repetir e repetir e repetir e repetir esquecendo os limites. Que diferença. Um corpo nu, mais uma vez. Quanto nu suporta Educação? Quando é que o corpo está nu? Que roupas? Que nu?
           Uma colagem que deveria proteger o nu dos olhares, que deveria encerrar-se e dar palavras aos outros, no encontro, rouba palavras. Encontra música, produz movimento que deixa o corpo ainda mais nu. Risco. Não havia planejado nada daquilo. Nada consciente. Deveria ter parado na primeira oportunidade, mas quando é que foi? O corpo nu que se produz na academia e poderia ser atacado pela academia, se protege com academia de muitos modos (devir animal, devir criança, resistência, blá, blá, blá, blá...): dois livros na frente de n sexos. Pudor? Talvez. No entanto, mais importante que forma nu é o movimento que a produz, movimento de invenção que potencializa outras formas impensadas, movimento caro a este território de muitos hábitos cristãos de escolares cátedras.
              Para um performer o nu é figurino obrigatório. Para um professor, assim como o chapéu de guizos de Larrosa[1], o nu é um exercício de resistência e por isso, de criação. Acabo de ser aprovado no exame de qualificação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. Então, até nu defesa.




[1] LARROSA, Jorge. Elogio do riso. IN: LARROSA, Jorge. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Autêntica: Belo Horizonte, 2000.












quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Caderno de Bordas

*Este texto é borda do Caderno de Bordas do trabalho "Uma formação esquizita. Uma Educação bricoleur" apresentado por Tarcísio Moreira Mendes ao exame de qualificação de Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. Aqui, o caderno borda algumas notas não apresentadas no texto escrito à mão, mas que pode ajudar a ir a outras bordas de pesquisa.


Fiquei pensando desde o dia que apresentei um exercício textual ao grupo “Formação como processo ético-estético-político”[1], a respeito do impacto e da compreensão acerca do meu trabalho.
Talvez por ter usado a caixa que havia comentado com minha orientadora, os primeiros olhares para aquelas folhas soltas, dentro de uma estranha caixa de papel, criaram a primeira questão e talvez a que se demorou mais nas discussões (porque nada foi discutido a partir do que estava escrito ou composto entre impresso em papel vegetal e texto de jornal velho): como pensar a constituição da banca de qualificação para avaliação deste texto? Uma banca de frutas, talvez. Cheirando a maçãs vermelhas, abacaxi de Marataízes cortado na hora, manga de Ubá colhida no pé e claro, muita falação como na feira livre e suas muitas bancas. Múltiplas bancas que não vendem apenas uma fruta ou legume ou verdura ou mel, compartilham muita conversa, mas muita conversa mesmo e muito mais. Mas o que isso tem a ver com educação?

Pensando agora enquanto escrevo, escrevendo agora enquanto penso, penso ainda mais. A coisa que não era defesa, que não era texto de banca, se banca? No desafio, assumo a caixa e seus textos como desejo de ser dissertação, na Educação sobre Educação com muita Arte. Apostando na composição múltipla deles, alegro-me com a potência de seu jogo de agrupamento de sequenciação, pronto para ser outro. Por isso, qualquer coisa que escreva aqui não tem o desejo de justificar escolhas ou explicar muitas coisas. Certeza que não limitará a multiplicidade de sentidos que podem surgir da relação dos textos e dos corpos, dos textos como corpos, dos corpos como textos. Nem mesmo este caderno que era diário, que por não ser tão diário – não foi escrito dia após dia, mas contaminando-se pelos dias – tem encerrado em suas palavras as intenções que suscitam dele. Sinto-me alegre ainda por saber que não tenho o mínimo controle sobre aquilo que digo, mas sei que ao dizer, outras coisas estão por se fazer. Por isso agora, só e junto, escrevo.

Livre da responsabilidade de explicar o que produzi com os texto da caixa, me senti instigado a contar um pouco sobre o processo de sua produção em fragmentos. Assim, acredito experienciar outros sentidos possíveis para coisas que ando chamando Educação e Formação e Arte, coisa muito importante, pois facilmente tende-se a um reconhecimento, independente dos territórios onde estas palavras estão. Uma educação pensada em relação com territórios. Uma formação que se faz em território. Uma formação que desterritorializa. Uma Educação que reterritorializa. Uma formação e uma educação em movimento atento às linhas de fuga.

Um caderno de bordas não quer ser de bordo, no qual se encerram os caminhos traçados de uma viagem, tentando catalogar para instruir os futuros viajantes, como um documento de registro seguro. Um caderno de bordas se quer com muitas bordas, nas bordas do já feito, mas transbordando um outro feito para bordar o feito antes de modo ainda não feito, dando vazão a outros feitos e ainda deixando fios desfeitos para muitos outros bordados.

Achei interessante tomar este lugar do discurso ou quem sabe, melhor, da narrativa. Um lugar do relato, contar uma história de como a coisa é feita, sem me ocupar em querer criar uma coisa bem-feita. Isto provocado desde o momento em que ouvi falar de um tal modo cartográfico de acompanhamento de pesquisa. Um modelo que parecia um antimodelo que, no entanto, se mostrou como modelo para criar meu próprio modelo. Não querendo impor meu modelo para pesquisa, para escrita ou para seja lá o que for, o interessante foi ser provocado a criar algo singular a partir de uma singularidade outra. Interessante para um território acostumado a pesquisas metodizáveis, reproduzíveis, controláveis, generalistas como as ditas Ciências da Natureza e que andam por influenciar as ditas Ciências Humanas e por consequência, a Educação. Uma possível dispara a uma metodologia no território da Educação provocado por outros territórios como Filosofia e Arte que acabam criando uma educação outra, um possível da educação se fazer de outro modo, abandonando o desejo de segurança por um método totalizante para pesquisa.

Os restos

Das leituras d'O anti-Édipo – e aqui leitura é muito mais que encadear ou buscar entender o que o autor quis dizer ao dizer alguma coisa, leitura como prática de violência ao pensamento que se põe a pensar o impensado – uma surpresa nos encontros com a dupla Deleuze e Guattari ao propor um outro lugar para o que chamamos de Sujeito. Deslocamento do sujeito para o lugar de resto[2]. Resto de um processo que se efetua e que se torna outro. Sujeito como resto do processo e não como resultado de um processo ou fim do processo.

Dissertação como resto de um processo que se torna outro e não fim de um processo ou resultado. Dissertação como composição de restos que torna estes outros. Nos agenciamentos e conexões, novos sentidos ainda não sabidos. Aquela história de repetição que gera diferença. É que ao procurar uma coisa acabei encontrando outra. Uma Educação que propõe uma coisa, mas que está pronta para ser proposta a outra e outra e outra e e e... é possível.

Ao procurar por uma caixa que queria transformar em uma nova mala, já que havia perdido a minha em desConexões em Campinas[3], encontro jornais de anos passados nos quais havia reportagens a respeito da conjuntura política e educacional; reportagens de cadernos de cultura com belíssimas imagens/fotos. Reportagens sobre arte. Tanta coisa interessante que de certa forma compunha com aquilo que produzia atualmente. Mas como?

Também pensei em imprimir o texto em restos de papel de pão ou papel de rascunho. Pois venho pensando que se tem consumido muito papel bom para textos ruins[4]. Para não correr o risco de desperdiçar mais papel e também contribuir, quem sabe, para preservação do planeta, pensei em usar os restos de papel que há muito tinha guardado, restos de papel que embalaram o pão que me deram energia para produzir algum texto e aí, talvez, pudesse alimentar alguém ou deixar mais fácil a tarefa de jogá-lo no lixo. Um formação que pensa em alimentar, mas que também não descarta a possibilidade de alguma coisa já não prestar para uso é possível.

O texto

Os textos foram produzidos e enviados para o e-mail a partir dos encontros do Travessia Grupo de Pesquisa, para um exercício chamado “Atravessou o Travessia”[5] que ora se tornava “atravessando o travessia”, “atravessando o atravessou o travessia”, “Atravessado pelo travessia”... Nomes muito sugestivos e bons pra compor e, sobretudo, um grupo o qual, através de suas lideranças, potencializa um território no qual composições investigativas são sempre possíveis. Muita coisa produzida por lá que me interessava e que poderia ser interessante para mostrar para outras pessoas que não estavam lá ou, que lá estavam e que olhando agora, tornava-se outra coisa, inclusive para mim. Algumas conclusões, mas muitas e muitas outras potentes questões.

Organizei primeiro em ordem de produção, por data de envio, começando por fevereiro ou seria fevereteiro? Depois, percebi que a ordenação alternava os fatores de sentidos. Tinha ainda os jornais velhos. E uma ideia surgiu: e se juntar estes textos com aqueles jornais? Que outros sentidos se produzem? Resolvi abandonar as datas e investir em um texto para cada página, tornando-os independentes e relacionáveis. Lembrei a querida parteira Sônia[6], quando sugeriu que criasse um texto no qual fosse possível começar de muitos modos e continuar de outros modos e terminar ainda, de outros modos, no qual não fosse previamente definida a ordem de suas folhas por páginas ou encadeamento de palavras ou parágrafos ou temas ou qualquer outro fio de Ariadne. O leitor é convidado a criar junto ao texto. Uma educação, uma formação na qual se cria junto, na qual se é convidado a compor de modo múltiplo, experienciando inícios sempre possíveis e fins inimagináveis.
A primeira opção era imprimir os textos nos jornais velhos. Mas devido à impossibilidade técnica (as modernas impressoras não reconhecem a gramatura do jornal, nem a contemporânea ideia de um pesquisador) ou financeira (a gráfica que se predispôs, sem garantir sucesso, cobra uma quantia significativa que não poderia pagar no momento) resolvi imprimir os textos em papel vegetal que criara uma certa estética da precariedade (uma estética de resto? Sei não.) e textura interessantes, abandonando, por hora, a ideia de imprimir na folha de jornal velha.

Ao perceber a transparência do papel vegetal pensei: e se colar sobre o jornal? Comecei a experiência sem saber o que seria: mais cola, menos cola, o tipo de cola, o efeito que causa, a escolha do texto com a folha do jornal, a falta de segurança em relacionar texto e jornal. Risco de perder os textos impressos no papel vegetal. Risco de perder os jornais há muito guardados.
Uma formação sem controle, sem causa-efeito, com junção de fragmento e fragmento, sem segurança, sem saber o que cola, o que relaciona com o quê antes da relação. Uma Educação com rugas, com muitas rugas, diferentes rugas que dobra e desdobra no encontro entre materiais na diferença é possível. Uma formação com riscos, sem análise de riscos que impeça os riscos, uma educação que se arrisca é possível.

Assim foram surgindo. O que seria uma ou duas e três experiências, foi se tornando um instigante exercício de surpresa. Tornaram-se muitas colagens, com tantos efeitos e sem muita causa, causando mais efeitos. Marcelo[7] diz que parece mais um trabalho de artes plásticas. Às vezes provoca que isso não é estudar. Talvez por uma certa euforia e descontração ao realizar minhas pesquisas.
Uma educação em arte. Uma formação estética, plástica. Um professor em formação em arte que se torna artista plástico ao pensar educação é possível. Uma formação que se confunde com prazer, com o trabalho de um artista que brinca com o tempo da criação é possível. Uma educação que confunde o que é estudar criando outro modo de estudo é possível.
Não acho que seja preciso dizer ou explicar algumas relações que se criam com o(s) texto(s). Guardo aqui minhas impressões para que você leitor possa se aventurar pelo instigante exercício de composição. Ou pare por aqui.
Uma educação que se faz em composição. Uma formação que se dá em composição no mundo e com o mundo. Uma educação que ajuda a compor, mas não determina uma única composição é possível. Uma formação que instiga a composição singular de restos é possível.

O projeto

Como avaliação de uma disciplina obrigatória do mestrado (disciplina obrigatória no mestrado é preciso?) fui provocado a pensar em como apresentar meu novo projeto, já que não se tratava do mesmo que fora apresentado à banca de seleção, intitulado “Angel Vianna provoca: professor como dobra do artista”. Inicialmente, pensei em apresentar o mesmo projeto e dizer que não havia mudado nada, só para cumprir o dever. Mas Sônia, muito paciente, propôs que usasse a atividade para pensar nos desdobramentos da pesquisa. A presença de Angel Vianna não estava mais diretamente posta como objeto, apesar de ser presença marcante na minha trajetória como pesquisador.
Uma pesquisa que se pensa em pesquisa. Uma formação que faça da obrigação outra coisa. Um projeto de educação que está sempre pronto para se tornar outro. Um projeto que não sirva para impedir fluxos, mas que libere devires. Criei o “Cuidado! Educação em obra: invenção de si e de mundo”. Apresentei-o com muito entusiasmo e logo vieram os incômodos, as incompreensões, os assombramentos e o desejo em ser convidado para minha banca de qualificação, que me pareceu também um desafio e uma suspeita acerca do sucesso de execução da pesquisa. Uma educação e uma formação que se faz com incômodo, com incompreensão, com assombramentos, com desafios, com suspeita e, sobretudo, com entusiasmo é possível. Espero somente a marcação da data para formalizar o convite, mas talvez o sucesso não seja aquele esperado. Ainda bem.

Pesquiza que se faz pesquisando

Algum tempo se passou e outra obrigação: apresentar alguma coisa, obrigatoriamente, na I Mostra de Pós-Graduação da UFJF. O que apresentar, pensava. Não que não tivesse o que apresentar, tinha muita coisa para apresentar. Aliás, a obrigação agora estava a meu favor, precisariam aprovar meu trabalho, porque era obrigação que apresentasse. Segui as regras: Objetivo, Justificativa, Metodologia/Resultado, Aposta (Hipótese). Com os encontros do Curso ou Grupo de Estudos “Formação como processo ético-estético-político” com outros e outros e instigado pela leitura d’O anti-Édipo surge a bricolagem[8] na qual cada participante do grupo ou do curso trazia, em cada encontro, algo para compor uma obra que se fazia a cada novo encontro.
Uma pesquisa como bricolagem. Uma formação como bricolagem. Uma dissertação como bricolagem. Um texto acadêmico como bricolagem. N'O anti-Édipo a dupla Deleuze e Guattari pensa o esquizo como aquele que se compõe como um bricoleur, um que associa livremente códigos, que embaralha códigos, que não segue um único e mesmo código sempre. Aqui a pesquisa é pensada como uma bricolagem (ou seria uma brincolagem) tornando a pesquisa única, singular, mas com múltiplos desdobramentos: uma pesquiza. Formação como encontro outro e outro e outro e e e... Educação como encontro outro e outro e outro e e e... Formação esquiza. Educação esquizita. Vida como livre associação. Pesquiza como afirmação de vitalidade.

Obra de arte.

A aposta na obra de arte como vida ou na vida como obra de arte está presente em trabalhos de pensadores como Nietzsche e Deleuze e Guattari e Foucault. Importante salientar aqui que penso arte não representada por esta ou aquela linguagem artística. O interesse neste trabalho é pelo modo de produção arte. A criação em educação. A arte na Educação sem desejar ser arte-educador ou professor-artista ou qualquer outro hífen que interrompa fluxos ou crie identidade que segmente a possibilidade de vida. Aqui arte é desdobra. Tem a ver com o exercício de criação de uma forma que inaugura um novo modo de relação no e com o mundo e, por isso, inaugura um novo mundo. Talvez nem seja obra de arte, mas obra em arte, metamorfose. Uma qualificação obra em arte. Uma dissertação como obra em arte que convoca seu leitor a obrar em arte, transformando-o em artista também. Uma obra em arte que cria artista ao criar junto mais obra em arte. Sem pretensão em figurar ou ser aquilo que não é: obra de arte apreciável, contemplativa, de um desses cemitérios de formas e coisas belas e históricas que se costuma chamar museus.
Formação que aposta no devir das formas. Metamorfoseia público em artista. Educação como produção de obra em arte. Obra em arte que cria obreiro em arte, que confunde objeto e sujeito, impedindo a distinção entre objeto e sujeito. Formação que aposta na arte de criar formas singulares e não reproduzir seguras familiaridades de objetos que se querem ideais. Uma formação e uma educação que obra arte é possível.

Os restos 2

Volto a falar dos restos, já me desculpando, mas acho também que está claro que nada é muito linear ou evolutivo aqui na escrita. Livre associação intensificada, pois as relações vão se dando assim, sem respeito a uma cronologia antecipada ou ordenada. É um Acontecimento que implode o tempo chronos inaugurando um aión múltiplo que corre lá cá aqui[9]. Não é primeiro isso, depois aquilo e depois aquilo outro. É isso e isso e isso e isso e... mas que tolice dizer isso[10]. Então era isso![11]
Os restos aqui também são efeitos dos encontros do Acontecelagem[12] que se iniciou em Ouro Preto, no fim de agosto e inicio de setembro de 2013. Num dos esquizodramas[13], saímos pelas ruas recolhendo algumas coisas que julgamos se tratar de restos. Tolinhos. Depois juntamos tudo e tornamos aquilo outra coisa. Restos de um outro processo que se iniciou ali. No entanto, nós nunca somos restos, apesar de muitas vezes querermos ficar agarrados aos restos que produzimos – Sujeito, Dissertação, Tese, Artista, Obra de Arte, a Forma Professor, a Forma Aluno, O Anti-Édipo, a Bíblia, Além do Bem e do Mal, Pedagogia da Autonomia, Poesia... Somos processo, processando sempre. Efetuando processo que dá início a outros, forma em devir.

Uma educação atenta aos restos, mas não refém dos restos. Uma formação atenta aos restos e pronta para tornar restos inicio de outro processo é possível. Uma educação que não tem a Forma, a Fôrma. Uma formação que forma sempre pronta para desformar-se, sempre em formação de formas que forma outras formas e outras e outras e e e... Não formação continuada, porque a forma final estática não é possível, nem a falta de forma é possível. Apesar de não termos a fórmula sempre se forma. Sempre há forma.

A bibliografia ou Referência – Ou coisas que insPIRAM

As referências não se configuraram diretamente. Apesar de estarem a todo momento presentes. Mas aqui muitas coisas e muitas delas implicaram decisivamente para as escolhas, para os trajetos e principalmente, provocaram estar onde estou e escrever como escrevo. Nada seguro, nem tampouco limitado a uma análise causa-efeito. Assim, faço o convite para que leia alguma coisa da referência que me inspira ou pira. Comece tranqüilo, despretensioso a entender, no entanto, atento para pensar outras coisas. Aposto nisso: em textos, em referências que provocam a pensar o impensado, pensar outras relações possíveis, outras relações que ainda não haviam sido pensadas por tão simples que pareciam, isso nada tem a ver com esse desejo atual de querer ser novidade instantânea. A leitura destes textos pede tempo, um tempo que não é cronológico, mas que inaugura novos tempos. Um tempo descompromissado com o calendário. Aliás, se houver algum incômodo com este tempo que insiste em nos afastar de um tempo vivo, enchendo-nos com cronogramas, avaliações, relatórios, resultados, análises de desempenho, sugiro que se perca um tempo nestas leituras e quem sabe, descobre-se que é possível inventar outro tempo para a vida que não perde tempo e inventa mais tempo para viver. E são eles: “Diferença e Repetição”; “O anti-Édipo”; “Além do Bem e do Mal”; “Ecce Homo”, “Entre Composições”; “Corpoalíngua: performance e esquizoanálise”; “Corpos Informáticos: Performance, Corpo, Política”; “Escrileitura n-1: procura arisca de fins transitivos”; “Tabacaria”; “Cântico Negro”; “O Que será que será”; “Pistas sobre o método Cartográfico”; “Pensamento, corpo e devir: Uma perspectiva ético/estético/político”.
Não selecionei nenhum trecho diretamente porque têm coisas que provocam também: o peso do livro, a cor da capa, o agrupamento dos artigos, as fotos selecionadas, o cheiro da impressão, a demora para baixar o arquivo da internet. Sei ainda que por hora, ao selecionar este ou aquele fragmento, o selecionador intensifica uma parte do texto. Porém, mais importante que selecionar este ou aquele fragmento, é perceber as relações que se cria com tal seleção. Por isso, muitos textos que trazem em seus corpos fragmentos de outros autores como Foucault ou Deleuze, mas afirmam velhas relações, não aumentam a potência da vida na academia. Mais importante que citar tal ou tal pesquisador, é apostar nas relações que seus trabalhos potencializam na afirmação de vida possível na Academia. No momento, aposto nas obras e nas descobertas que o leitor possa desvendar nestas obras que impulsionaram estar onde estou e levá-lo para um lugar que ainda não fui. Há ainda muita coisa por lá que cá não há. Uma formação de fragmentos, mas que não seleciona ou determina fragmentos importantes. Uma educação que mostre suas fontes, que seja fonte, mas que não limite a um recorte da fonte sempre a jorrar. Uma educação que indique referências, mas que não crie dependência é possível. Uma formação que inspire e que por vezes pire é preciso.

Metodologia ou como cheguei cá estou 

Não diria uma metodologia esquiza ou metodologia de pesquiza porque as pesquisas são assim, apesar de um desejo de controle impedir. Todo pesquisador seleciona e agrupa informações ou coisas criando sentidos. O pesquisador, desse modo, tem o papel de intensificar relações acabando por criar relações não pensadas. Os esquizos são aqueles capazes de promover as livres associações de coisas como um bricoleur, disse Deleuze e Guattari. Somos todos esquizos, continuam os dois. Porém, não o esquizofrênico artificializado pela psicanálise, pela obsessão de uma cura que não existe. Esquizos que relacionam coisas, que ora respeitam códigos, ora embaralha todos os códigos, criando no caos, donde surge ainda vida. Uma formação esquisita para os moldes que se espera. Uma educação esquiza.  Uma educação que permite a livre associação entre coisas. Uma formação que intensifica relações na diferença. Uma formação e uma educação bricoleur. Uma formação e uma educação produzidas por códigos, mas não refém dos códigos, que embaralha códigos, descodifica e codifica e outras coisas, mostrando que a vida é movimento e não constância de forma. Uma formação que se produz com arte, a arte bricoleur que associa livremente coisas não por falta de rigor estético, mas na produção de estética outra, um rigor que a vida exige de criar com o que está no mundo e não fora dele. Uma educação esquiza que só produz diferença na diferença, não diferentes em oposição de identidades. Uma educação que não quer produzir cura medicalizada ou prognóstica porque só pode produzir saúde, potência de vida. Uma formação sem se ocupar com forma saudável porque não há. Uma educação e uma formação preocupadas apenas com produção de vida, saúde em produção.

Para passar a limpo

Aposto numa escrita intensiva. Assim, vendo cada letrinha, cada forma de juntar um termo ao outro, os escapes da caneta, a modulação na grossura da ponta do lápis, as variações das cores do grafite e da repetição das letras, o cheiro da borracha friccionada na folha, confusão de memórias e atualizações de escolas. Desculpe-me a falta de rigor linguístico com a norma culta padrão ou as normas da ABNT que, por vezes, me escaparam no caderno. Aqui importa outro rigor, o rigor da língua que gagueja enquanto escreve. Da escrita que hesita no não saber da próxima palavra. Desvios e descontínuos. Um cutuque aos tempos da reprodutibilidade técnica replicável, aplicável, copiável, reproduzível. Uma educação não replicável, não aplicável a padrões fixos e seguros. Uma formação experenciada na sua singularidade. Uma educação produzida como rascunho definitivo.
A escrita de um texto a limpo era costume do meu Ensino Fundamental, mas ainda está presente em algumas escolas, resistindo aos apelos tecnológicos ou servindo como castigo aos jovens superconectados que esquecem como se escreve. Será? Copiar, passar a limpo para quem sabe fixar melhor o que fora escrito. Será? Capricho e boa letra é sempre desejável e recompensável com boas notas ao final de um bimestre difícil. Nem mesmo as aulas de Matemática estão livres dos cadernos a limpo. Uma educação nada asséptica contagia. Uma prática da Educação Básica contamina uma prática do Ensino Superior (ou seria Pós-Superior?). Provocado. Provocando. Uma formação que provoca contágios é possível. Uma educação que provoca outro modo de pensar educação, o básico aqui é pensar. Quem sabe um delicioso exercício estético de compor a melhor letra possível para um leitor atento. A atenção à escrita deve ser intensificada, pois os erros ficarão evidentes. Uma educação que não apaga erros, mas propõe outras versões que tornam o erro outra coisa: um exercício para criar! Uma formação que ao pensar educação ou vice-versa suja as mãos. Uma educação que se permite sujar pelo exercício de pesquisar é possível. Atenção: nada de grafologia, por favor. Aqui seremos todos alunos da vida, aprendo a fazer do Mesmo outras coisas.

A caixa

Deixo aqui espaço para pensar como produzi a caixa. Dica: a fôrma que possibilita outras formas é possível. Porém não é fácil. Pensar é sempre um exercício difícil, contudo, vivo!





[1] Seminário interno realizado para apresentação de produção junto ao curso de extensão da UFJF que faz parte do projeto de pesquisa “Oficinas de Exercícios Formativos: cartografias dos processos ético-estético-políticos em professores em formação” financiado pela FAPEMIG e realizado pelo Travessia Grupo de Pesquisa, no ano de 2013.

[2] “O terceiro corte da máquina desejante é o corte-resto ou resíduo, que produz um sujeito ao lado da máquina, peça adjacente à máquina.” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 60).

[3] “V Seminário Conexões Deleuze e territórios e fugas e...” ocorrido na cidade de Campinas, promovido pela Faculdade de Educação da Unicamp, entre os dias 20 e 23 de agosto de 2013. Na ocasião, em uma noite em homenagem a Dionísio, perdi uma mala que gostava muito, usada em uma performance apresentada por lá.

Lembrei este trecho do poema “Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade:
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
[...]
DRUMMOND, (Carlos Drummond de Andrade). Morte do leiteiro. Disponível em http://letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/460649/. Acessado em 24 de jan. de 2014.

[5] O Travessia Grupo de Pesquisa, certificado pelo CNPq e abrigado no PPGE/UFJF, do qual faço parte, possui um grupo virtual usado para comunicação entre os seus membros. O “Atravessando o Travessia” é um exercício de escrita on-line que não deseja um rigor acadêmico tradicional. É motivado e deseja provocar algumas intensificações a partir dos encontros presenciais das segundas-feiras, dia de reunião do grupo.

[6] “O professor é um parteiro, ele tira do aluno o que tem para dar. Se o aluno não tem nada, não sai nada. Mas é preciso sempre ter cuidado: é claro que o aborto existe. Muitos professores matam o artista na sala de aula”. (Klauss VIANNA, A dança, 1990, p. 34).

“Um procura um parteiro para os seus pensamentos, outro alguém a quem possa ajudar: é assim que nasce uma boa conversa.” (NIETZSCHE, Para Além do Bem e do Mal, 2010, p. 97).

[7] Marcelo Neves é artista plástico e professor de arte e especialista em Arte e Comunicação pela UFJF e atual companheiro de cama, mesa e banho.
[8] A partir das leituras d’O anti-Édipo que diz “É assim que todos somos: bricoleurs” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11) foi proposto que a cada encontro do grupo “Formação como processo ético-estético-político” alguma coisa relacionada aos encontros fosse trazida pelos participantes para compor uma obra em bricolagem.

[9] “Esse tempo crônico se opõe como contratempo a figura de aión. Aión é um nome derivado de aieí, que pode ser traduzido por sempre, e que vem da mesma raiz que dá o latim aeternus. No fragmento de Heráclito, aión poderia referir-se ao tempo considerado de uma vez, ao tempo-todo, ao tempo perene.” LARROSA, Jorge. Chronos e aión ou o acontecimento. In.: _____. Nietzsche & a Educação. Traduzido por Semíramis Goini da Veiga – 3ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 124.

[10] “Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter dito o isso.” (DELEUZE; GAUTTARI, 2010, p. 11)

[11] “Isso equivale a dizer que o sujeito é produzido como um resto, ao lado das máquinas desejantes, ou que ele próprio se confunde com essa terceira máquina produtora e com a reconciliação residual que ela opera: síntese conjuntiva de consumo, sob a forma maravilhosa de um “Então era isso!” (idem, p. 31)

[12] “Acontecelagem – imersão em esquizodrama” foi promovido pela Fundação Gregório Baremblitt / Instituto Félix Guattari, entre os dias 30 de agosto e 1º de setembro de 2013, na cidade de Ouro Preto – Minas Gerais.

[13] Esquizodrama é maquinaria produzida pelo desejo Gregório Baremblitt junto ao encontro e ao encanto da esquizoanálise. “O esquizodrama funciona como um conjunto difuso de pragmáticas, estratégias, táticas e técnicas inspiradas em diversas cartografias praticadas na teoria psicanalítica de G. Deleuze e Felix Guattari. Dos numerosos livros que compõem essa obra, privilegiamos os tomos que constituem “Capitalismo e Esquizofrenia” (O anti-Édipo e Mil Platôs), porém não descartamos nenhum outro.” BAREMBLITT, Gregório. Dez proposições descartáveis acerca do Esquizodrama. Disponível em http://artigosgregorio.blogspot.com.br/2008/02/dez-proposies-descartveis-acerca-do.html. Acessado em 24 de jan. de 2014.